Conteúdo por Maria Eduarda, Matheus Izzo e Nádya Duarte
Um show, por si só, não é algo novo em concepção, mas é único na forma como é percebido, vivido e apresentado. É a outra face de um projeto que teve seu antes, durante e, principalmente, um depois tão intenso; diga-se de passagem, incerto. Quando? Quem fará? Como? A situação estará melhor o suficiente? O contexto finalmente deixará isso acontecer? Contudo, o mais interessante é compreender como as peças vão se juntando até constituírem unidade e como tudo se alinha até o resultado final. É partindo desse pressuposto que o nome do Bullet Bane se agiganta no cenário atual.
Em novembro de 2021, se percebe que as coisas estão diferentes, de uma forma “melhor” do que se acostumou a ver nos últimos anos. Na Fabrique Club, em São Paulo, no último sábado, (20), houveram encontros e reencontros, entre abraços e interações provenientes de humanidade e união, como se faíscas estivessem surgindo novamente, restabelecendo um contato que, por motivos de uma devastadora força maior, se tornou tão frio e sensível. Os responsáveis por reacender essa chama em público e crítica foi o quinteto paulistano, que está na ativa há mais de dez anos.
“Tem que ser agora“, diz o vocalista e a nova alma do Bullet, Arthur Mutanen, em entrevista ao ROCKNBOLD dois dias antes do show de retorno aos palcos após um ano e meio de pandemia. “A provocação e a mudança têm que vir de dentro – de dentro das bandas, das pessoas que estão nelas. O público é reflexo da banda. Eu vou ter essa provocação sempre. Enquanto a gente não mudar o nosso jeito de fazer as coisas e de abordar assuntos com o público, a gente nunca vai conseguir aumentar esse rolê“, ele completa.
Quando questionado sobre o sentimento a volta dos shows ao vivo, antes da apresentação apoteótica do grupo, ele completa: “a gente teve que fazer tudo agora, foi muito rápido, tipo, a gente marcou a parada para três semanas, tudo bem corrido; a gente ficou meio assustado no começo, agora foi a última semana de ensaio, todo dia, o dia inteiro. Então agora a gente está bem e muito ansioso esperando por esse momento. Acho que todo mundo está da mesma forma, na real, já que faz tanto tempo que não acontece nada“.
Depois disso, o que restou foi uma neblina densa e confusa, em forma de pergunta que não queria ser calada: como descrever esse sentimento, individual e coletivamente? Qual foi o ponto, no meio da névoa, que solucionou essa incógnita? Depois de dois anos longe da sensação do pertencer tão vasta, é sentida a onipresença que envolve cada um dos que estiveram ali: é a conexão entre público e artista, a troca de energia quase palpável; resultado de uma saudade mútua e, ao mesmo tempo, diversa em como fora sentida e projetada. Fica claro, assim, que tudo se encaminha à uma coisa só.
Foi através do peso da dúvida quase respondida que o Bullet Bane apresentou pela primeira vez ao vivo grande parte do “disco que eles nunca tocaram”, Ponto, lançado em 2020. O impulso principal foi dado pela vontade de se realizar “o melhor show que eles já fizeram”. Pelo menos é isso isso que afirma o multitalentoso Mutanen quando fala sobre as novas canções.
“Durante essa pandemia, a gente começou a construir uma trajetória diferente para as novas músicas, trazer características diferentes para elas. Então a gente sentiu uma galera diferente aparecer e uma energia diferente surgir que a gente não sentia há muito tempo, tá ligado? Então, eu acho que a gente segue principalmente por esse lado. A gente tá sentindo uma energia boa e eu também tô me sentindo muito mais acolhido durante a pandemia pelo público, por novas pessoas e tudo mais. Então a gente tá com essa sensação de que vai ser uma parada muito muito especial, além de ter sido um ano e meio sem fazer nada e tem vários pequenos pontos que vão somando para levar isso, né, porque a gente é a primeira banda de rock que vai voltar – todas as outras datas estão depois da nossa. E isso é um negócio meio assustador, também, por ser uma casa de show que a gente já tocou várias vezes, mas foi para abrir para show de banda gringa ou festival, tipo o Rajada. A gente já chegou a ser headliner lá, mas é a primeira vez que a gente toca sozinho. Quando anunciou, a gente tava no susto – o primeiro lote esgotou no primeiro dia – então eu sabia que esse negócio ia ser especial e a gente começou a se preparar de uma maneira diferente.“
Quando se apresenta um álbum ao vivo é como se fosse uma nova experiência – uma nova perspectiva dele sendo levada para o público, diferente do que se encontra na versão de estúdio. Como ressignificar o trabalho, então? É possível existir algo no disco que ainda não foi explorado e que funcione muito melhor ao vivo?
Arthur fala sobre como as diferenças de perspectivas o ajudaram durante a quarentena: “Eu passei a cantar do jeito que eu sei cantar hoje durante a pandemia. Eu comecei a estudar muito. O Ponto foi gravado numa época diferente da que eu estou hoje. Não existe perfeito, nem certo ou errado, mas, na minha concepção, eu estou bem mais confortável e tranquilo e sei que o resultado vai ser ainda melhor do que a sonoridade do disco. A gente gravou e ouviu os ensaios e sabe que vai ter uma entrega diferente da que existia antes.“
A gente vê que deu certo, sim, quando sente a bateria no solo bem abaixo dos pés, mandando um impulso direto para o coração. É como um desfibrilador coletivo, acordando todo mundo mais uma vez – familiar, mas carregado de uma nova emoção (ainda não nomeada) depois de meses de espera inconstante. E você sabe que o show foi bom e o Bullet Bane tornou mais um sonho em realidade quando o vocalista, que é uma presença e peça de entretenimento por si só, faz o palco parecer o topo do mundo; quando ele expressa bem o sentimento de comemoração, do jeito que ele gosta; e isso transparece – nas danças, na forma como se movimenta, em como dialoga com o público além das faixas – em todos os discursos e gestos.
É especialmente bom quando o Bullet Bane reforça a importância de se sentir confortável para ser quem se é; não só pelo próprio exemplo, por falar de si e de suas experiências, mas por se colocar no lugar do ouvinte e ser sua voz – porque todos já estivemos ou estaremos lá – reforçando que o espaço pode ser ocupado por todo mundo e que música não é e nem deve ser um divisor, mas sim, o algarismo dentro da soma. E acalenta o coração olhar ao redor e ver tanta gente diferente cantando, balançando a cabeça, gritando a plenos pulmões e se divertindo do seu jeito, entre moshs e passinhos de dança.
Aí se inicia outra situação, porquê a mensagem do Bullet Bane foi captada e praticada: as pessoas estão realmente se sentindo acolhidas para se expressarem como quiserem; até para subir ao palco e se abraçarem e não só para se despedirem na espera do próximo evento, mas para concretizar aquele sentimento de se enxergar no outro – de poder ser um, completo.
“Não sei antes de eu entrar, mas eu sei que participei da mudança nesse lado de fazer com que as pessoas se sintam confortáveis pra ouvirem o que quiserem e se sentirem seguras ouvindo nosso som. O cenário do hardcore, por exemplo, eu sempre tive certo bode disso. Gosto da galera que participa e representa, gosto das bandas e tenho contato com algumas delas, mas esse negócio de cenário, de defender e levantar bandeira é algo meio falso“, conta Arthur. Ele prossegue: “Todo mundo fala muito mas, no final das contas, se alguém fizer algo diferente, já não é mais visto como parte daquilo. Querendo ou não, o Bullet Bane veio disso, sabe? Então, para mim, sempre foi e é um desafio, mesmo, tipo, desafio de vida, de falar, “não, eu estou fazendo parte de uma parada que a maioria das pessoas, de todas as bandas, têm dez anos a mais que eu”. Faz parte de uma missão e não faria sentido, para mim, participar de uma parada dessa se não fosse para deixar mais jovial. Não só de roupa, mas também, no jeito de ser, do jeito de agir; parar com aquela coisa de ser brutamonte. Eu levo muito na cabeça por causa disso, mas levo na cabeça com orgulho. Eu acho importante trazer mais esse lado que o emo tinha, algo mais leve e divertido.”
É essencialmente monumental quando a música é boa, diversa e cativante – feita por gente que abre espaço para falar de pautas urgentes e fundamentais – que definitivamente não podem ser ignoradas. Dia vinte de novembro foi feriado nacional – Dia da Consciência Negra – e isso tudo foi demonstrado no discurso de Cotozera, amigo de Arthur – que, nas palavras de Emicida, ressaltou: “tudo o que nós tem é nós” – destacando precisamente que cabe a cada um de nós participar ativamente da mudança.
Os shows mudaram bastante por conta da pandemia e é perceptível que o contexto caótico e estarrecedor que assolou todo o globo nos últimos 18 meses influencia de forma direta ou indireta a parte criativa dos artistas. No caso do Bullet Bane, a maior dúvida pairava sobre o ar da novidade: o que eles poderiam, então, levar de novo ao público além das tracks do último disco? Arthur, no entanto, pareceu controlar as inseguranças como uma criança que age com naturalidade e inocência em uma situação adversa. Impressiona a forma como tecnicamente os músicos Fernando Uehara, Dan Souza, Rafael Goldin e Renan Garcia permanecem entrosados e abrindo espaço para Mutanen se transformar num grande entertainer, acrescentando ao espetáculo visualmente e esteticamente. E lá no fundo da mente mas no centro do palco, o vocalista pareceu lidar muito bem com a ansiedade de voltar a se apresentar após tanto tempo.
“Não só pra gente essa parada toda tá tipo um canhão de ansiedade por dentro, porque a gente não faz nada há um ano e meio. Desde sempre a gente tinha certeza que quem estivesse preparado para voltar a milhão depois da pandemia ia dar certo e as pessoas iam acolher. Foi o que aconteceu. A gente nunca vendeu tanto ingresso antecipado na história da banda. A gente sentiu que, não só pela movimentação de tudo o que conseguimos construir na pandemia, agora no final dela, as pessoas estão com muito mais vontade de ver show, de saudade dessa coisa toda. Isso faz com que a gente tenha vontade de voltar com uma nova cara, uma nova identidade; fazer transformação, mesmo. A gente viajou junto pra fazer o disco e eu conversei com eles sobre a importância desse lado mais visual, artístico e conceitual – a importância disso pra mim e pras outras pessoas, também. A questão do acolhimento é você se sentir parte, de alguma forma. Quando você só faz música e ponto, as pessoas não vão se sentir parte – elas só vão gostar da sua música. Mas, para mim, é infinitamente mais que música – é fazer parte de alguma coisa de verdade e se sentir acolhido, querer estar junto daquelas pessoas. A gente quer trazer algo muito mais bem construído, porque profissionalizamos nossa forma de apresentar o show em todos os aspectos e mudamos a nossa forma de nos portar na situação. Também fizemos um show com dinâmicas e construções diferentes, porque é importante pras pessoas se identificarem“.
No final das contas, é impossível segurar o esboço de um sorriso quando se olha para a frente e vê um amigo da banda, no canto do palco, se divertindo, comemorando e dançando, como talvez não fizesse há muito tempo. É inspirador e lembra que, no fundo, é esse o motivo de todo mundo estar ali reunido: celebrar a arte e todos aqueles que a motivam; ser feliz no momento, por todos aqueles que o planejaram e o executaram.
Desde as faixas mais consolidadas, como “Equilíbrio“, “Sentir” e “Lembro Como Começou” – passando por outras, mais intimistas, até com direito a teclado – todas são possibilidades de enxergar o prisma familiar sob uma nova perspectiva. Em meio a isso tudo, ainda mais impressionante é ouvir as guitarras altas, imponentes – do jeito que deve ser – mesclando-se com o baixo num breakdown excelente – de quem sabe o que faz e se permite ainda elevar diante da oportunidade de viver aquilo de novo. Essa mistura homogênea entre talento, saudade, união e amor fez com que o show fosse, de fato, uma experiência; não só para quem já é fã – mas até para quem ainda não conhece tão bem o livre ato de poder sentir. O show do Bullet Bane deste último sábado convidou todos os presentes a buscarem mais.
Talvez esta seja a virada de chave que todos estavam novamente precisando, afinal, poucas coisas são tão artísticas quanto o dom de representar, unir e questionar.
Bullet Bane se apresenta na Fabrique Club, em SP – 20/11/2021
Fotos por Nádya Duarte / ROCKNBOLD. Todos os direitos reservados.