Sexo e música sempre caminharam lado a lado – mas e no período de isolamento?
Debaixo de um amplo céu azul, corpos iluminados pelo sol californiano se esfregam uns nos outros, com direito a troca de beijos e carícias entre as quase 20 pessoas – e várias melancias entre elas.
Assim são algumas das cenas do clipe de “Watermelon Sugar“, de Harry Styles. Lançada como single promocional do álbum Fine Line em novembro de 2019, quando o artista participou do programa “Saturday Night Live”, a faixa só ganhou um vídeo em maio deste ano, ou seja: quando o mundo inteiro já completava meses em quarentena e tanto a proximidade quanto a aglomeração ali retratadas pareciam fazer parte de um tempo muito, muito distante.
Não que a ironia tenha sido desconsiderada: filmado em Malibu em janeiro de 2020 – só uma semana depois de a cidade de Wuhan, na China, entrar em quarentena – o clipe abre com a mensagem “This video is dedicated to touching” (“este vídeo é dedicado ao toque“).
Desde o lançamento da canção, fãs e críticos tentam desvendar o significado por trás da letra e a conclusão quase unânime é de que seria simplesmente uma referência a sexo oral. Em entrevista a Zane Lowe para o Apple Music, Styles tentou desconversar e não confirmou nem negou a teoria, dizendo que não curtia muito explicar suas músicas.
Inegável é que “Watermelon Sugar” e seu clipe são carregados de sensualidade – e que muita gente talvez nunca mais consiga ver uma melancia da mesma forma. Além de ser bem contagiante, é claro, o hit ainda está entre os dez mais tocados da Hot 100 da Billboard e também da lista de 50 faixas mais tocadas mundialmente do Spotify.
E ele não é um caso isolado.
Letras com referências sexuais estão longe de ser novidade. Aliás, até Charles Darwin já teorizava que a principal razão por trás da própria existência da música humana seria o sexo. Mas é intrigante como, justamente quando a simples proximidade física entre pessoas está (ou deveria estar) mais limitada, tantos lançamentos façam alusão ao tema.
O melhor exemplo talvez seja “WAP“, colaboração de Cardi B e Megan Thee Stallion lançada no início de agosto que passou semanas no primeiro lugar das principais listas globais de mais tocadas. As rappers aqui deixam pouco para a imaginação: o título é sigla para “wet-ass pussy” ou, em bom português, uma “b*ceta muito molhada”.
Diferentemente de “Watermelon Sugar”, o clipe de “WAP” foi gravado em um mundo já profundamente afetado pela pandemia. Em entrevista para a i-D, Cardi B revelou que foram investidos cerca de 100 mil dólares apenas em testes laboratoriais de todo mundo envolvido nas filmagens, que incluíram participações de Normani e Rosalía.
No vídeo, Cardi e Megan passeiam e dançam por uma mansão colorida que combina com suas roupas, bem ao estilo de um “Dr. Seuss NSFW”, como opinou a Vulture. A construção de uma “fun house” aliada a versos como “deslize seu nariz como um cartão de crédito” e até mesmo “vamos fazer roleplay, eu vou usar um disfarce” evocam a fantasia e o desejo de algo que, no momento, parece inalcançável para grande parte das pessoas – algo que, ao menos por enquanto, está apenas em sonhos, na imaginação. Tão perto, mas tão longe.
No Brasil, não é muito diferente. Das 50 faixas mais tocadas no Spotify Brasil atualmente, pelo menos nove nacionais têm letras com referências, seis das quais foram lançadas durante a quarentena – como “Desce Pro Play (PA PA PA)“, parceria de Mc Zaac, Anitta e Tyga, e “Flores“, de Luísa Sonza e Vitão.
Talvez também não seja uma coincidência que muitas dessas músicas tenham batidas animadas e dançantes. É quase um diagrama de Venn. O fechamento de bares e baladas – além do cancelamento de shows ao vivo – pode ter impedido que lançamentos como Future Nostalgia de Dua Lipa e Chromatica de Lady Gaga fossem aproveitados ao seu potencial máximo. Ainda assim, suas faixas continuam entre as mais tocadas mundialmente.
“Durante a quarentena, se tornou comum conversar sobre os tipos de rituais e costumes que possam persistir e prosperar em um futuro hipotético e vacinado, quando nós voltarmos a boates lotadas e nos apoiarmos uns nos outros em bares e sairmos beijando pelos cantos de novo”, sugeriu o editor da Pitchfork Jayson Greene. “No momento, para tantas pessoas encarando telas, [o sexo] é uma atividade fantástica, como jogar tênis de mesa na lua.”
É como se essas músicas nos permitissem fantasiar sobre um futuro próximo em que todas essas coisas podem acontecer de novo – sejam corpos suados se esfregando no meio da pista de dança ou encontros mais íntimos sem a necessidade de passar por um isolamento de duas semanas antes. Elas criam uma antecipação, um desejo por algo que, se não é totalmente proibido, é hoje muito limitado. Assim como nas preliminares, na sensualidade musical da quarentena existe uma provocação e, quem sabe, até mesmo uma certa esperança.
O que hoje em dia chamam de – ugh – “carentena” tem afetado cada um de um jeito. E a música pode ajudar artistas e público a lidarem um pouco melhor com isso – pelo menos por enquanto.