Grupo formado por artistas de seis estados brasileiros conta história contemplativa e espacial em álbum produzido a distância.
As tensões relacionadas – e ampliadas – ao momento de pandemia que o Brasil e o mundo vivem há mais de um ano podem ter sido paralisantes para alguns. Para o Coletivo Terceiro Mundo, foram inquietantes. Temas como saúde mental, capitalismo e anticolonialismo se misturam ao amor e viagens espaciais em Quase Tudo o Que Há em Nós, novo álbum, lançado em junho de 2021, que une batidas pop familiares a referências que vão do hyperpop ao funk.
O grupo nasceu em maio de 2020 de uma urgência do músico e artista visual Ruan Henrick, de Paraty, Rio de Janeiro, de produzir em conjunto em meio à pausa abrupta trazida pela crise sanitária de covid-19. Com reuniões presenciais fora de questão, ele recorreu ao espaço virtual para se conectar com artistas locais e de outros cantos do país através de redes como Twitter e Facebook. Entre idas e vindas, membros mais próximos do coletivo se juntaram de vez para um “mega projeto musical” em outubro, por sugestão de um dos integrantes, Marwin Lima – trabalho que resultou no primeiro e mais novo disco da equipe.
Nove artistas do coletivo participaram da produção: Catarina Teto, de Barra do Corda, Maranhão; Charles Frutas, de Caxias do Sul, Rio Grande do Sul; Marwin Lima, de Palmares, Pernambuco; Luqqas/Extinction of the Bees, de Carmo do Rio Claro, Minas Gerais; Vindit, de São Paulo, capital; Pedro “tovivo” Nilton, de Angra dos Reis, Rio de Janeiro; wesout, de Araruama, Rio de Janeiro; e Ruan Henrick e elesbinho, de Paraty.
O ROCKNBOLD conversou com parte do grupo sobre sua dinâmica, inspirações e como foi produzir um álbum em circunstâncias tão peculiares. Veja a seguir:
ROCKNBOLD – Como foi o processo de criação do álbum? Foi completamente produzido a distância?
Vindit – Sim, foi completamente produzido a distância. Foi doido. O Marwin colocou a gente num grupo do WhatsApp à 1h da manhã e começamos a trocar ideias.
Ruan – A gente no começo tinha o plano de criar uma dinâmica entre os membros, cada um faria uma música com um outro membro em conjunto, por exemplo: Marwin fazer collab com Charles, eu fazer collab com Luqqas. Só que isso acabou saindo do controle depois de um tempo, acabamos fazendo com pessoas que a gente achava que funcionaria melhor as ideias.
Luqqas – Sim, trocando ideias, demos, trechos… Aí quem tava produzindo organizava tudo, conduzia o trem e terminava a música. Geralmente uma pessoa tinha a ideia, a fagulha inicial e se juntava a outras pra elaborarem algo maior e trabalhar junto.
R – Depois, o que a gente precisava organizar e decidir em conjunto, como as datas de lançamento, as artes oficiais e os materiais de divulgação, a gente fazia em uma reunião, geralmente aos domingos pelo Google Meet ou pelo Discord.
Catarina – 100%. Eu voltei a usar redes sociais por causa desses benditos. Meu sonho é virar bicho grilo com todo mundo junto numa cabana em Machu Picchu e fazer música até morrer de fome, uma hora ou outra isso vai acontecer.
ROCKNBOLD – Que desafios vocês encontraram? Como solucionaram?
L – Um desafio foi tentar organizar as ideias de uma mesma música e coletar as gravações mantendo a coesão. No geral, as ideias se complementavam esteticamente, mas ainda assim a execução é um pouco dificultada pela distância. Como é muita gente com muita ideia diferente, por mais que sejam ideias boas, temos que chegar em vários consensos e manter uma coesão estética, então um desafio interessante foi tentar unir tantos universos em um só.
V – Um dos desafios da minha parte, na produção e masterização, foi manter os vocais de todos minimamente coesos sendo que foram gravados em equipamentos diferentes, na casa de cada um, desde microfones decentes a microfones do celular e vocais enviados pelo WhatsApp. Achei um desafio muito bacana, na real. A solução foi ter muita paciência.
R – Eu sinceramente tive um incômodo enorme quando nossas ideias não batiam, principalmente nas questões de artes visuais. Eu acredito que seja um efeito de eu sempre fazer tudo sozinho nos meus projetos pessoais, mas com o tempo eu aprendi a lidar com isso e na maioria das vezes nos ajudou a encontrar algo melhor do que algo que faríamos sozinhos.
C – Quando eu não gostava de alguma ideia que quase unanimemente era votada como boa, acho que isso rolou com todo mundo em algum momento. O negócio é se acostumar mesmo. E também Ruan é bobão, é um grande empecilho pro grupo.
V – Sim, tem o fator Ruan bobalhão.
R – Incrível.
ROCKNBOLD – Como vocês decidiram o tom do álbum, tanto em termos de letras como de som? Como chegaram na narrativa que queriam contar?
R – A primeira coisa que planejamos, meio que de forma espontânea, foi a capa do álbum. Eu pessoalmente tenho a mania de produzir a capa dos meus trabalhos antes de produzir a coisa musical, e foi o que eu fiz também nesse projeto. Acho que a questão de ter um “Saturno contemporâneo colorido” deu todo um norte pra gente. Depois, as ideias meio que saíram de um fio quase invisível, as coisas acontecendo ao redor, ideias que trocamos, movimentos sociais que apoiamos e que fazemos parte, tudo foi se adicionando nessa enorme sopa.
L – Pra mim, a temática mais marcante do álbum é essa atmosfera meio pandemônica de pandemia, subjetividade, sentimentos conflitantes de amor, ódio, tudo isso misturado… Mas se eu tivesse que resumir eu diria que é um álbum de amor, curiosidade e contemplação, um “cado” de ódio por coisas mundanas que passamos, sentimentos conflitantes, misturado numa roupagem brasileira e anticolonial. Na “Órfãos do Terceiro Mundo”, por exemplo, eu endoidei nessa vibe de revolta latinoamericana contra submissão ao “primeiro mundo”, de identificação entre os países periféricos e quando escrevi tinha muita coisa horrível de Israel contra a Palestina, então meio que esse sentimento de empatia pelos nossos camaradas do “Terceiro Mundo” me alimentou criativamente. Já em outras faixas, a vibe foi completamente pro lado de coisas subjetivas, menos palpáveis.
C – Foi um pique de universo, de entender as coisas que estavam rolando em comum, né. A ideia de que está todo mundo no mesmo furacão, mas nem sempre no mesmo barco. E ser jovem é foda, você fica enxergando as coisas com um olhar romântico querendo ou não. A gente só quis expor essa parada, eu acho.
ROCKNBOLD – Que temas e experiências inspiraram o álbum?
R – Acho que num geral, nossas vivências. Tudo o que está acontecendo ao redor no momento: necropolíticas, guerras num momento em que as nações estão frágeis pela pandemia, desmonte de políticas públicas que esperamos uma vida inteira para poder desfrutar, pandemia que já podia ter acabado… Essas coisas que a gente luta diariamente pra deixar de fazer parte do nosso cotidiano, que lutamos pra não aceitarmos como um “novo normal”. Tudo isso nos levou aonde chegamos, claro que o álbum não é inteiramente sobre isso, mas tudo dentro de nossas vidas tem sido indireta ou diretamente por causa dessas coisas, não é?
C – Desde ódio ao presidente até desilusão amorosa (que sinceramente acho que não pode faltar).
V – Tem uma faixa no álbum que cantei em cima da produção foda do wesout, ele me mandou a faixa e foi a primeira vez que expressei raiva numa música. Comecei a gritar e coloquei bastante distorção nos vocais do refrão pra enfatizar a temática, que é meio sobre a comunidade LGBT e a sua coragem e força em atravessar fronteiras nesse mundo dividido.
ROCKNBOLD – A sonoridade do álbum parece puxar mais para o pop e nota-se uma certa influência do hyperpop e até mesmo do funk. Que artistas e gêneros serviram de inspiração?
V – Acho que eu sou o culpado pelo “hyperpop”. (Risos) Em 2020, era só o que eu ouvia, bem quando a pandemia bateu. Pra mim, o pop como gênero está em tudo, exceto talvez uma ou duas faixas, é tudo uma variação de certa forma. Em termos de inspiração, acho que a gente foi pegando o gosto um do outro, compartilhando o que cada um gostava e achando um lugar em comum… Eu fui jogando as músicas de 100 gecs no grupo.
L – Sem dúvidas [o hyperpop] foi uma das influências mais marcantes pra gente e queríamos transparecer essa influência. Tentamos pegar tudo quanto é elemento de pop moderninho e misturar com umas paradas nacionais de MPB e funk. Acho que o lance do funk foi uma boa sacada porque é um gênero que pessoalmente eu acho super vanguardista, se funk fosse gringo estaria sendo aclamado internacionalmente, mas como é BR é frequentemente desvalorizado.
R – Sim, foi bem isso. No início da pandemia, eu estava ouvindo muito o último álbum do Cícero, Cosmo, e isso meio que me influenciou bastante a jogar espaço e estrelas e planetas em tudo que é canto, seja visual ou musical.
ROCKNBOLD – Por que algumas letras vêm em inglês?
V – Pra mim, vem muito na cabeça o contrário, tipo, por que não? Se muito da cultura musical que a gente consome é uma projeção da globalização norte-americana, não vejo como não sermos influenciados por isso num nível artístico, e a língua inglesa perpassa isso. Pelo menos isso me marcou muito. E entender isso nem como positivo nem como negativo é um processo muito complexo também, que demorou um tempo pra processar, mas que no fim acho que contribuiu pra fluidez da nossa criatividade e liberdade artística.
L – Pra mim, depende da vibe da música. Sinto que quando componho em português, estou muito vulnerável, é muito mais intimista. Eu amo minha língua, acho muito linda, charmosa. Mas, às vezes, a ideia inicial chega em uma frase em inglês, aí eu só sigo a linha de pensamento e acaba nascendo uma música em “gringuês”. Acho que geralmente as músicas que faço em inglês são mais subjetivas, abertas a interpretação mais pessoal, enquanto as músicas em português são mais viscerais e poéticas.
C – Infelizmente eu penso em inglês, então por que não compor em inglês? Ainda assim, morte ao imperialismo, o próximo álbum vai ser todo em esperanto-espanhol-braile.
V – O próximo álbum vai ser em emoji language. Pós-verbal.
R – Simlish, língua de sinais, braile, ultrapassar o sentido de música.
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