Descrever sentimentos em palavras é uma tarefa para poucos. Transformar essas sensações em música é algo ainda mais difícil: requer cuidado, atenção e muita dedicação ao trabalho que está sendo colocado no mundo. Íntimo e sofisticado, CINEMA, álbum de estreia do duo de indie pop The Marías, é um ótimo resultado de um projeto de dois anos e meio, possibilitado principalmente pela cumplicidade do casal María (vocalista) e de Josh Conway (guitarrista/produtor).
Ativo desde 2016, o grupo tomou forma ao passo que o relacionamento entre María e Josh também evoluía. A vocalista, que nasceu em Porto Rico e cresceu nos Estados Unidos, havia se mudado de Atlanta para Los Angeles para tentar a vida de cantora. Quando chegou à nova cidade, conheceu o produtor e os dois passaram a trabalhar juntos em músicas para trilhas sonoras, tanto em espanhol quanto em inglês. Daí o nome do primeiro disco da banda, que é, acima de tudo, uma homenagem do casal ao cinema, grande paixão dividida pela dupla.
Apesar de ser o disco de estreia do grupo, CINEMA não é o primeiro lançamento do The Marías: o duo se esforçou em lançar trabalhos elaborados nos últimos anos, como os excepcionais EPs Superclean, Vol. I (2017) e Superclean, Vol. II (2018), que contam respectivamente com os sucessos “I Don’t Know You” e “Cariño”. Também vale destacar os singles “Care For You” e “Bop It Up!”, lançados no ano passado, que seguem a mesma trajetória dos projetos anteriores da banda.
Ao analisarmos o trabalho completo do The Marías desde o início até o momento de lançamento de CINEMA, é possível dizer que há uma consistência nas produções musicais. Com riffs suaves e um baixo acentuado, somados aos vocais quase sussurrados de María, a banda criou um estilo encantador e onírico que cativa os ouvintes logo no primeiro play. A união de texturas do rock psicodélico e de dream pop feita pelo grupo é tão marcante que mesmo em uma regravação de música pop conseguimos perceber os traços do processo criativo do casal. Foi o que aconteceu no cover de “…Baby One More Time”, clássico de Britney Spears (#FreeBritney).
No álbum de estreia, a sensação não foi diferente. Com 13 faixas, CINEMA é um trabalho consistente, que traz o melhor dos estilos já trabalhados pela banda em outros lançamentos, entrando ainda mais em uma atmosfera noturna e misteriosa. Quase como a sensação que temos ao assistir um filme pela primeira vez, o duo cria uma expectativa no ouvinte na primeira metade da tracklist para surpreendê-lo ao finalizar o disco de uma forma que foge do moldes já apresentados nos singles e EPs.
O disco começa com “Just a Feeling”, faixa instrumental que conta com violinos e um riff delicado de guitarra. É uma ótima introdução para um trabalho íntimo e profundo como é o CINEMA. A transição para a próxima faixa, “Calling U Back”, é feita por meio de um latido de cachorro, capaz de assustar aquele que ouve, mas ganha sentido por conta da potência da composição que vem a seguir. Na segunda faixa, o destaque vai para as camadas de rock psicodélico nos efeitos da guitarra de Josh e na voz de María, além da linha de bateria potente.
“Hush”, um dos três singles do álbum, é uma das músicas mais sensuais do disco, trazendo batidas típicas da disco music do final dos anos 70 e um refrão viciante, que gruda na cabeça por horas. O vídeo também é bem trabalhado, recriando um conceito similar ao que pode ser encontrado no filme “O Iluminado”, de Stanley Kubrick.
Quarta música do disco, “All I Really Want Is U” não traz nenhuma novidade e é um pouco repetitiva, podendo ser considerada a mais fraca de CINEMA. Ela é acompanhada por mais uma canção instrumental, “Hable Con Ella”, que apresenta a menor duração na tracklist – apenas 33 segundos. Na construção dos instrumentos, a ideia presente em “Just A Feeling” é retomada de forma resumida, o que cria uma ponte entre o meio e o começo do álbum.
Single mais recente lançado pelo duo, “Little By Little” apresenta uma produção simples ao ser comparada com as outras faixas do disco, mas merece destaque por ser a primeira música que apresenta trechos em espanhol em CINEMA. A preferência por letras na língua inglesa é um dos pontos que diferencia a construção do álbum de estreia com os outros EPs, que sempre tentavam trazer pelo menos grande parte das canções no idioma hispânico.
“Heavy” traz uma batida dançante junto com uma letra mais introspectiva e poderia ser facilmente uma canção do álbum Lonerism, do Tame Impala. Na sequência, vem “Un Millón”, o mais animado de todos os singles, que apresenta elementos de flamenco em texturas mais eletrônicas, além de uma letra sensual em espanhol que narra um convite para dançar.
A sequência de “Spin Me Around” e “The Mice Inside The Room” relembram os trabalhos do Radiohead, principalmente na fase do disco Kid A, com composições mais profundas e um instrumental que reforça os baixos e as batidas eletrônicas, junto com riffs que se repetem ao longo das músicas.
Décima faixa de CINEMA, “To Say Hello” é uma balada triste, que cresce junto com o aumento do uso de sintetizadores e termina de uma forma poderosa, com uma última batida e a repetição da frase-título pela voz sussurrada de María. A música que vem na sequência, “Fog as a Bullet”, segue a atmosfera melancólica, resultando em uma linda canção gravada em voz e violão com o auxílio de alguns trompetes ao fundo.
Na última faixa do disco aparece a grande surpresa. Com fortes batidas no teclado e uma bateria intensa, “Talk To Her” é um spoken word que chama a atenção e que poderia ser facilmente encaixado em alguma das narrativas mais introspectivas de Sofia Coppola. Apesar de fazer parte de um disco grande no número de canções e também na duração – mais de 40 minutos -, a canção é uma ótima finalização ao CINEMA.
A amarração bem feita do primeiro disco do The Marías merece destaque. Mesmo apresentando momentos em que parece percorrer uma trajetória incerta e que também dispersa a atenção daquele que está ouvindo, CINEMA surpreende como um trabalho de estreia conciso e experimental.
8/10
Ouça!
Cinema The Marías