ABBA reforça autoridade na música pop em ‘Voyage’

Primeiro disco do grupo sueco em 40 anos entrega o que parecia impossível: um retorno triunfal e nostálgico de um dos maiores nomes da cultura pop
ABBA 2021 Credito: Balille Walsh Foto enviada pela assessoria 02/11/2021
Esta review é especialmente dedicada à Nair Baratelli (1941 – 2006)

Muita coisa mudou nos últimos quarenta anos. De 1981 e 2021, o mundo nem sequer parece o mesmo, levando em consideração as mudanças climáticas, revoluções tecnológicas, transformações políticas e toda evolução que hoje torna nossa realidade irreconhecível. Este tempo equivalente a uma vida inteira também marca o intervalo entre The Visitors e Voyage, os dois últimos discos dos suecos do ABBA, que após anos de especulações, compartilharam com o mundo seu trabalho final na última sexta-feira (5).

Voyage chegou sem grande alarde ou comoção na mídia tradicional, por mais que o reencontro de Björn, Benny, Agnetha e Frida fosse fortemente aguardado e implorado. Ainda sim, para os fãs, em especial para os mais jovens, testemunhar o lançamento de músicas inéditas de um dos grupos mais bem sucedidos da disco music foi algo semelhante à experiência extasiante de ver um cometa centenário com os próprios olhos: só acontece uma vez.

Quatro décadas não foram o suficiente para apagar o nome do ABBA na cultura e história. A sólida carreira do quarteto sueco tem como base inúmeros hits, um musical, e uma enorme dose de nostalgia, mas também tem uma grande importância para a história da música se observarmos que o ABBA está na base de um dominó. O som único do grupo é apontado como inspiração de artistas como Elton John, Madonna, entre outros que foram base de uma revolução na música pop entre os anos 80 e 90.

Anunciado, após muita especulação, em setembro deste ano, Voyage traz 10 faixas inéditas, supostamente gravadas nos últimos anos, que poderiam ter sido facilmente lançadas nos anos 90, ou em qualquer momento ao longo dos últimos quarenta anos. Isso porque a essência, energia e melancolia que marcou os inúmeros sucesso do ABBA permanecem ali, intactos, como se tivessem literalmente viajado através do tempo, como antigas demos perdidas em algum lugar do sótão de um dos integrantes, que hoje estão todos na faixa dos 70 anos de idade.

De fato, o disco proporciona uma verdadeira viagem no tempo ao ouvinte, através da imersão em suas faixas. Entre muitas baladas de pianos, cordas e sintetizadores, se torna impossível não se apaixonar e se emocionar com o sentimento agridoce atrelado às melodias de “Don’t Shut Me Down“, “Just A Notion” e “I Can Be That Woman“. Até mesmo as faixas mais modernas da carreira são reverenciadas nos sintetizadores da ótima “Keep An Eye On Dan“, que é talvez a mais agradável surpresa do disco. O projeto é selado pelo caloroso, grato e triste sentimento de despedida em “Ode To Freedom“, e se você não derrubou um lágrima até chegar nesta faixa, o triste laudo é que você está morto por dentro.

Sabe aquela sensação de que a música foi, de alguma forma, influenciada pelas tendências modernas? Aquela impressão de que uma melodia foi cuidadosamente produzida para se tornar hit no TikTok, com a qual já nos habituamos? Ela não está presente em nenhuma das melodias ‘bregas’ que tanto agrada os fãs clássicos, e isso não poderia ser um presente melhor à quem este projeto é direcionado: fãs. A despretensão comercial é bem sintetizada em uma entrevista de Benny Andersson ao The New York Times, que declarou: “O que há para provar? Eles ainda tocarão ‘Dancing Queen’ no próximo ano.

Mensurar o valor e qualidade de um disco como Voyage se torna impossível diante da realidade de que o grupo poderia ter gravado – ou resgatado – qualquer coisa, em qualquer gênero, que seria aceito e reverenciado por seus fãs, como água fresca no deserto. Isso se deve pela importância e impacto que o ABBA tem na música e cultura, pelo raro reencontro de artistas idosos que optaram pelo anonimato no auge de sua carreira, mas também pela indiscutível maestria em fazer o que eles melhor sabem fazer. Ainda sim, o disco sintetiza em poucas faixas o melhor de seus elementos mais marcantes, além do impacto avassalador de menos de dez anos de carreira e quase cinquenta anos de legado.

O novo disco de canções inéditas não foi a única novidade anunciada no último mês de setembro. Com a grande novidade, o grupo dividiu com os fãs uma série de shows digitais previstos para 2022, nos quais o público se reúne em grandes estádios para assistir hologramas dos jovens integrantes dançando e cantando aos maiores hits de sua carreira. A proposta tenta vender a ideia de que os reais Benny, Björn, Agnetha e Frida tiveram os movimentos de seus corpos capturados para a produção de suas versões digitais, e isso supostamente entregaria a experiência de um show real de seres humanos por meio de seus hologramas, certo? Na realidade, não é bem assim.

A breve carreira do grupo foi imortalizada pela imagem de músicos joviais, atléticos e apaixonados, uma vez que durante boa parte de sua trajetória, o ABBA era composto por dois casais. Essa imagem jovem ainda está estampada nos bonecos virtuais que irão performar para multidões no próximo ano; e o que deveria proporcionar às novas gerações a experiência de ver o ‘verdadeiro ABBA’ ao vivo, abre o debate sobre os limites da tecnologia no entretenimento ao vivo em uma indústria onde artistas devem lutar arduamente contra os efeitos do tempo. Até onde é aceitável pagar por performances digitais onde jovens bonecos substituem artistas idosos reais?

Seja por escolha ou por demanda do setor, o quarteto é raramente visto ou fotografado nos dias atuais exibindo seus fios grisalhos e rugas de expressão, e a imagem atrelada ao ABBA ainda é a mesma da ‘Dancing Queen‘, jovem e doce de 17 anos. Isso não quer dizer que os fãs esperassem a disposição dos integrantes para se apresentar ao vivo nos dias de hoje, até porque eles não querem, não precisam, e nunca esconderam o fato de que preferiam muito mais gravar canções, ao em vez de se apresentar. A experiência da reunião poderia se limitar à divulgação do novo disco, para assim fechar definitivamente a última história do ABBA com um caloroso adeus, e estaria tudo bem.

Entre o lançamento de seu primeiro disco, em 1973, até a separação definitiva do grupo, em 1982, o legado do ABBA permanece inabalável não só na voz dos apaixonados por disco, mas unindo todas as tribos e conectando gerações para cantar seus sucessos em coro. O impacto de seu legado e canções vão muito além dos milhões de cópias vendidas ao redor do mundo, e se mantém inabalável pela influência na música moderna, no carinho que nutrimos pela nostalgia, e no amor por um ente querido ao qual associamos suas melodias, as quais nos conectam eternamente, como um laço entre o plano mortal e espiritual. O legado do grupo sueco não precisava de um novo disco para reforçar sua autoridade na música, mas por alguns instantes, o prazer de testemunhar um lançamento inédito tornou a vida mais fantástica, e a realidade um pouco mais suportável.

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