Por Júlia Campos e Maria Eduarda Duarte
Na adaptação do clássico de ficção científica Duna, dirigida por Denis Villeneuve, o espectador é posto de frente para uma frase igualmente soturna e poderosa, já nos primeiros segundos de filme: Dreams are messages from the deep, que se encaixa perfeitamente na temática do novo álbum do Bastille, “Give Me the Future“. A citação gerou debates e reflexões diversas entre os observadores.
O disco, lançado em 4 de fevereiro de 2022, traz em todos os seus elementos fortes indícios de uma odisseia experimental, que reflete sobre os aspectos da existência humana diante de uma série de eventos que fogem de seu controle, mas que afetam diretamente sua percepção de si e do mundo. O ROCKNBOLD traz agora uma review sobre a nova obra do Bastille.
Além do disco em si, o quarteto retoma sua tradição de storytelling unificado em seus clipes, estabelecido na era Bad Blood. Fazendo uso de Inteligência Artificial e Realidade Virtual, o grupo brinca com a estética futurística estabelecida no primeiro single, Distorted Light Beam e a história segue em Thelma + Louise e para enfim chegar à Turn Off The Lights, que completa a história criada pela banda.
A monumental Distorted Light Beam inaugura o disco em uma nota futurística e profundamente emotiva, construindo-se de forma misteriosa, mas também expressiva. A voz grave e maleável de Dan Smith se une a tons metálicos e robóticos, numa dicotomia entre aceitar a realidade como ela é ou permanecer ligado a um sonho reconfortante.
Na sequência, surge a ensolarada Thelma + Louise, que faz alusões ao filme homônimo de 1991. O longa de Ridley Scott narra a tentativa frustrada de duas amigas de passarem um fim de semana longe do caos de suas próprias rotinas – temática reproduzida nesta faixa, que é singela e honesta ao expressar as aflições da vida moderna, embalada por um instrumental vivo e acelerado – muito similar ao do hit Pompeii, de 2013.
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A terceira faixa do álbum, intitulada No Bad Days, introduz uma melodia suave, com vocais harmônicos e ocasionalmente agudos no refrão, contrastando com a usual forma grave da voz de Dan. A canção foi escrita por Smith diante do luto pela perda de sua tia em 2019 e aborda, de maneira agridoce, a perspectiva da vida enquanto um espetáculo, bem como a esperança de que o pós-vida seja menos turbulento. A faixa se ergue com a impressão de um hino conforme se aproxima de seu final, unindo vozes de apoio a uma sonoridade expansiva e gloriosa, como numa profecia inevitável.
A cintilante Brave New World faz jus ao seu nome numa qualidade encantadora e clássica. É um elemento sonhador, que indica nova sequência para o disco e induz o ouvinte a ajeitar os óculos cor-de-rosa e enxergar a realidade por um filtro colorido – como se buscasse protegê-lo da natureza arrebatadora do mundo real. A faixa se assemelha a trilhas sonoras de contos de fadas e deságua de forma sutil e precisa em Back To The Future.
Disco tem referências da cultura pop
A quinta canção traz referências diversas a filmes que marcaram a história da cultura pop, indo de Blade Runner até O Mágico de Oz e finalmente chegando à máxima de seu título: Back To The Future. Aqui, o Bastille mostra que o desejo de liberdade e escapismo volta a ser o tema central numa construção vibrante e maleável, com destaque para o baixo de Kyle Simmons.
A sexta faixa do álbum, intitulada Plug In…, traz diversas reflexões e críticas a comportamentos e ideais encontrados na vida contemporânea, abrangendo inteligência artificial, danos ambientais e a indiferença de muitos em relação a debates urgentes. A canção mescla vocais num compasso rápido, que usam e abusam do vocoder, a instantes de desaceleração e harmonias cortantes, que se unem a uma melodia incisiva – especialmente ao final da faixa, momento no qual o violino brilha numa sequência profunda junto das súplicas de Dan Smith por um pouco mais de sensibilidade – ainda que esta seja falsa.
A sétima componente do álbum é Promises, que constitui um monólogo soturno de Riz Ahmed, abordando as mesmas temáticas da canção anterior – desta vez, sob nova perspectiva – ao que parece ser tão questionadora quanto, mas com uma dose maior de otimismo, permitindo-se nutrir esperanças para o futuro, sob a premissa de que talvez este não seja totalmente destrutivo – ao passo que olha para o passado histórico com gratidão a seus antecessores. Em uma nota autorreflexiva, Ahmed busca olhar para a sua geração e para o mundo em que vivem como possíveis veículos de transformação – depositando neles a esperança que seus antepassados nutriram e pela qual lutaram – momento que é acompanhado por uma melodia de tons sucessivamente amplos e acolhedores.
Shut Off The Lights, oitava faixa do álbum, é uma balada animada que através da melodia dançante esconde a letra que inicia levemente deprimente. A voz de Smith, em trabalhos anteriores já imortalizada por grandes hits como Bad Blood e Happier, faz um papel crucial aqui em manter elevado o otimismo da canção, mesmo que a composição esteja dizendo o contrário. No entanto, na segunda metade da faixa, o pessimismo dá lugar à esperança e a busca pela conexão que todos nós buscamos em outra pessoa.
Nas palavras do próprio Dan Smith, a música é sobre empurrar a ansiedade sobre o futuro para o fundo da mente e viver o momento com a pessoa que você está. O ritmo estabelecido pela bateria e pela linha de baixo em certo momento passa a ser ditado pelos vocais, que posteriormente são acompanhados pelos vocais de apoio e quando a música está perto de acabar, o Bastille nos surpreende com metais que são o encerramento perfeito para o último single do álbum.
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A voz eletrônica que inicia Stay Awake? é um choque comparada à faixa antecessora. Trazendo uma possível referência a Fitter Happier do Radiohead na introdução, onde a voz vinda de inteligência artificial clama por respostas e traça um paralelo com os artifícios eletrônicos atribuídos à faixa. A canção provoca uma reflexão sincera sobre o uso excessivo de tecnologias e a busca incessante da atual geração em apenas sentir algo novo, seja paixão ou violência.
A dicotomia da letra vai além; a dinâmica de poder hoje é diferente da de vinte anos atrás – apontada em um dos versos, “agora nós freaks e geeks podemos governar o mundo, temos tudo” -, ao mesmo passo que perdemos contato humano e o discernimento do real e irreal. Além das críticas aos rumos que a sociedade está tomando, o Bastille nos deixa uma dúvida clara: se em meus sonhos eu tenho tudo o que quero, por quê permanecer acordado?
Na décima posição, a faixa-título é possivelmente a mais complexa do álbum, liricamente. Give Me The Future é intimista a ponto de ser intimidante, grandiosa e épica ao mesmo tempo, com suas reflexões profundas a respeito de nós mesmos. No primeiro verso, a composição de Dan Smith, Mark Crew e Ralph Pelleymounter volta a tocar na ferida do excesso de tecnologia, falando de uma “segunda vida” e refletindo a respeito das coisas que poderiam ser feitas caso aquela fosse a vida real, trazendo até o mito do Rei Midas – a história do rei ganancioso que recebeu o poder de transformar tudo o que tocasse em ouro, até acidentalmente transformar a própria filha – como alegoria para segregar a realidade da ilusão muitas vezes causada pelo mundo virtual.
No refrão, Smith clama pelo brilhante e dourado futuro distópico e faz referências a outras obras da literatura, como The Handmaid’s Tale, de Margaret Atwood, que também se passa em um futuro distópico. Ao passo que a letra divaga entre realidade, ilusão e distopia, a melodia crescente da canção ganha força especialmente no segundo refrão, inspirada por trabalhos épicos de Phil Collins.
Um final grandioso
O clima positivo retorna em Club 57, a décima primeira faixa do álbum. Dessa vez, a faixa com o envolvimento de Ryan Tedder – frontman do OneRepublic e um produtor reconhecido por produzir grandes hits – é, de acordo com Dan Smith, uma carta de amor ao artista plástico Keith Haring e a cena artística da Nova York dos anos 1980. A faixa é uma alusão ao que Haring teria sentido ao chegar na cidade, ao sentimento eufórico e otimista de ter algo inesperado e novo à sua frente e o que realmente seria a realidade na cidade. Club 57 foi um bar frequentado por Haring e outros artistas da época como Jean-Michel Basquiat. Apesar da clara homenagem, a canção traz uma reflexão que todos nós já fizemos ou faremos em algum momento das nossas vidas: é amor ou só estamos buscando atenção?
Voltando ao contexto futurista, o interlúdio Total Dissociation traz os vocais distorcidos digitalmente, dizendo: “Quando eu estiver sonhando essa noite, posso ser qualquer um”, como se fosse um eco da canção anterior e preparando o ouvinte para o ato final da experiência.
Future Holds encerra o álbum e logo nos primeiros segundos já traz uma conclusão, resultado de toda a jornada de dúvidas e questionamentos internos levantadas ao longo da obra: quem sabe o que o futuro reserva? Ao longo da canção, apesar de todos os pontos levantados nos quase 30 minutos que antecedem a décima terceira faixa do álbum, o eu-lírico deixa uma mensagem bem clara: pare de se importar tanto com o futuro e com questões que estão além do seu alcance e foque em fazer o melhor possível hoje. A faixa é um final esperançoso, abrilhantado com o coral que canta o refrão e faz com que o indie pop do Bastille tenha um quê de gospel ao final, fruto da participação da mezzo soprano BIM à faixa.
Bastille lança versão deluxe
Lançada a 7 de fevereiro de 2022, a versão estendida conta com quatro novas faixas além das supracitadas, incluindo um remix de Shut Off The Lights em parceria com o DJ, produtor e compositor nigeriano SPINALL. Aqui, a faixa ganha novos ares, fazendo-se ainda mais descontraída e vibrante, com destaque para a batida rica em tambores e notas mais groovy do baixo, encapsulando-a numa atmosfera vívida e perfeitamente tropical.
As três faixas que a antecedem são responsáveis pela criação de uma sequência altamente reflexiva e dinâmica, que conferem ao disco uma nova impressão de completude – como se representasse o fim certeiro de uma longa jornada, pela qual os ouvintes foram conduzidos através dos sonhos caleidoscópicos do Bastille.
A interlude Back To The Innerverse, que vem logo após Future Holds, apresenta um monólogo de tons robóticos e impessoais, atuando, simultaneamente, como um observador total da experiência e um ligamento invisível entre o ouvinte e a obra em questão, puxando-o de volta para o centro da narrativa após um curto período de liberdade numa área externa ao mundo dos sonhos – espaço no qual é possível ir a qualquer lugar, fazer qualquer coisa e ser quem quiser.
Na sequência, o Bastille nos apresenta Real Life – faixa de tons calorosos que forma um contraste direto com sua letra mordaz e profundamente atual. Nesta canção, o eu lírico relata sua aventura por uma realidade alternativa, na qual ele não pretendia ficar – e que nem fora planejada para esta finalidade. No entanto, o refúgio digital se mostra tão acolhedor e diverso que passa a ser a principal escolha de seu visitante.
Enfim, a décima sexta faixa do projeto se apresenta com sonoridade ampla e vívida, trazendo consigo uma letra objetivamente realista, que aborda os altos e baixos da trajetória de seu emissor. Trazendo mais referências veladas da cultura pop, como o filme Vanilla Sky (2001), Dan Smith canta em survivin’ a metáfora de um sonho a ser alcançado, mesmo diante de tantas adversidades, que, ocasionalmente, dão lugar à esperança por dias melhores.
Bastille nos faz refletir… e repensar?
Give Me The Future é atual, coeso e tem grandes hits e canções introspectivas que nos fazem refletir – e talvez até repensar – para que rumo estamos nos levando. O trabalho mais sólido do Bastille desde seu álbum de estreia certamente tem grandes chances de trazer uma perspectiva otimista sobre o futuro quando o quarteto britânico fizer sua apresentação no Rock in Rio e inspirar o público a olhar para a frente sem esquecer do hoje.