Alt-J mergulha fundo no seu próprio imaginário em “The Dream”

O quarto álbum de estúdio do trio britânico deixa ainda mais fina a linha tênue entre sonho e realidade.

Alt-J não é uma banda para todos. Na realidade, é uma banda de extremos. Ame ou odeie. Ignore ou venere. Acompanhe ou esqueça. Independentemente da sua posição em relação ao trio britânico, é inegável que o som deles é único. Único a ponto de ser difícil definir o gênero do grupo. Rock? Pop rock? Synth pop? Afinal, o que é o Alt-J? 

A resposta veio no álbum The Dream, lançado em 11 de fevereiro, quase dez anos depois do excelente álbum de estreia da banda, An Awesome Wave. Assim como o debut álbum do trio, The Dream não traz respostas prontas. A nova obra do trio britânico composto por Joe Newman (vocais e guitarra), Gus Unger-Hamilton (teclado) e Thom Sonny Green (bateria) é o álbum mais intrínseco e honesto da banda até então. 

Ao se tratar de Alt-J, para responder uma pergunta sobre o presente é necessário voltar ao passado. O já mencionado álbum de estreia da banda, lançado em maio de 2012, foi uma surpresa inesperada para o público, a crítica e é claro, o trio. Vencedor do Mercury Prize, o álbum fez a banda tocar no grandioso festival Glastonbury, um dos maiores do mundo no ano de seu lançamento, e catapultou a carreira dos britânicos para o estrelato.

É raro encontrar quem nunca tenha ouvido o maior hit do álbum, “Breezeblocks” e saber sobre o que a música realmente fala. É um amor não correspondido? É uma viagem de ácido? É sobre sentir seu coração afundar a ponto de sentir o desespero tomar conta de cada célula do seu corpo? A resposta é muito simples: não importa. O álbum é muito mais que suas letras. An Awesome Wave é uma revolução. 

Se você precisa de uma resposta concreta para seguir ouvindo a banda, o mais próximo que posso chegar é que é uma carta de amor de Newman para as coisas que ele cresceu lendo e assistindo. O título do álbum? Tirado do livro Psicopata Americano. As faixas? Matilda é inspirada no filme O Profissional. Se inspirar na cultura pop para compor não é reinventar a roda, longe disso. Posso citar cinquenta outros artistas que fizeram a mesma coisa e tiveram êxito. Agora, ser uma banda estreante, lotar grandes arenas pelo mundo em sua tour de estréia, fazer um sucesso estrondoso com uma sonoridade nada comercial e não ser one hit wonder é um feito para poucos. Na realidade, só consigo pensar em uma banda que alcançou tal feito. 

Em seus dois álbuns sucessores, This Is All Yours (2014) e Relaxer (2017), a banda continuou com sua sonoridade singular, somada às letras que não ser sobre nada em específico, porém em The Dream, temos a impressão de termos respostas do que foi a onda incrível que varreu o mundo na última década.

The Dream e o sonho de Joe Newman

Em entrevista à NME antes do lançamento do álbum, o vocalista da banda contou que sempre teve dificuldade para compor músicas que fizessem parte de sua realidade porque se sente privilegiado. Frequentou boas escolas e cresceu em uma boa vizinhança. Foi campeão de natação quando era adolescente. Era simplesmente difícil compor sobre “coisas reais”. A banda se reuniu para compor o álbum no início de 2020 e logo depois a pandemia paralisou o mundo. Porém, aparentemente esse não foi o caso do trio que passou dois anos compondo e produzindo o álbum mais aberto e honesto até agora.

O álbum começa com “Bane”, uma faixa que traz as melhores referências das eras passadas da banda e pode causar estranheza nos primeiros 15 segundos. Você provavelmente imaginou o som de uma lata de Coca-Cola sendo aberta e é exatamente isso que você ouviu. Usando o desejo pela bebida como objeto, a faixa faz uma crítica ao consumismo, ao capitalismo e ao nosso descontrole perante nossos vícios. A composição conta até com um versículo da Bíblia. Tudo isso, é claro, com os corais, a característica guitarra de Hamilton, a bateria de Green e os elementos eletrônicos que são marca registrada da banda. 

“U&ME”, primeiro single do álbum, é uma das faixas mais comerciais do disco. Deixando temporariamente a grandiosidade de sua antecessora de lado, a canção é sobre uma tarde agradável de domingo que irá se tornar uma memória ensolarada em breve. É sobre sentir alegria em tocar guitarra despretensiosamente e aproveitar a companhia de quem está dividindo aquele momento com você. Sendo uma das faixas mais identificáveis do álbum, não é difícil se lembrar de uma tarde de domingo parecida com a relatada na faixa.

O segundo single do álbum vem logo em seguida, com a animada “Hard Drive Gold”. A música é uma tirada de sarro dos adolescentes que sonham em ficar bilionários com criptomoedas. Embora não coloque nesses termos exatos, a mensagem geral é: mesmo que você tenha dinheiro, o que você é além dele? Você quer realmente isso ou só é influenciável? Com uma bateria marcante, a faixa lembra vagamente o smash hit “Left Hand Free”, que tem um ritmo bem semelhante. 

O clima agradável fica para trás por ora, pois a quarta faixa do álbum, “Happier When You’re Gone” é um soco no estômago de qualquer pessoa que já se sentiu um visitante indesejado em sua própria casa. Diferentemente do que você possa pensar, a canção não é um relato de uma experiência de Newman; mas sim uma inspiração do livro Belos Cavalos, de Cormac McCarthy e uma canção de Jimi Hendrix, Hey Joe. O livro conta a história do meio oeste americano e a desolação dessa região. A reflexão que a faixa trás é: quando você entra numa jornada – seja uma aventura no velho oeste ou uma turnê mundial que irá te deixar meses afastado de casa -, você volta a mesma pessoa que você foi? Você ainda será amado e querido pelas pessoas que vivem com você quando mostrar suas mudanças?

“The Actor” é um grande exemplo de um dos fatores de sucesso da banda. Sem prestar atenção à letra ou sequer entender sobre o que ela está falando, é fácil se deixar levar pela melodia envolvente, ritmada por uma bateria lenta e um sintetizador que faz um trabalho incrível ao te fazer ficar cada vez mais envolvido no álbum. Contando a clássica história do ator que quer fazer sucesso em Hollywood, mas não consegue o êxito que esperava e acaba procurando uma válvula de escape – nesse caso, a cocaína – e fazendo referências ao falecido ator John Belushi, que faleceu por overdose, o trio faz um trabalho primoroso nessa faixa e o ouvinte se sente cada vez mais envolvido na história sendo contada. 

A sexta faixa, “Get Better”, é a responsável por devolver o clima agridoce ao álbum. Embora seja melancólica – de acordo com Newman, a canção foi composta em dois momentos: o primeiro quando sua parceira estava com dor e ele escreveu a música para tentar animá-la; sendo a segunda para uma pessoa que estava passando por um período de luto -, a música desperta sentimentos saudosos em quem a ouve. Desde um amor que não deu certo, um ente querido que sentimos falta ou um momento bom de nossas vidas que ficou para trás, é fácil se identificar com a melancolia composta pelo trio.

Continuando o clima agridoce, a sétima faixa do álbum, Chicago, é o primeiro grande exemplo do álbum que mostra o que a banda sabe fazer de melhor. Os primeiros 1:30 minutos da faixa soam como um interlúdio, talvez até como uma continuação de Get Better, no entanto, quando o instrumental começa, a música muda completamente. Com muitos elementos eletrônicos, a canção continua a história contada:a de irmãos vivendo um momento juntos, em meio de suas rotinas atribuladas e vivendo um momento feliz. Até que quando a música muda, com até elementos de ópera, é como se o céu estivesse fechando naquele momento. Uma briga aconteceu? Uma memória do passado que não foi superada? O que sabemos é que apenas um dos irmãos volta da caminhada. 

A oitava faixa do álbum, Philadelphia, é sem dúvidas a mais melodicamente interessante do disco. Sem ouvir a letra, é possível perceber o que a banda quer dizer com a canção. Contando com um quarteto de cordas na canção, o drama estabelecido ao longo dos 3:38 minutos da música é como um filme que não conseguimos parar de ver, porque estamos desesperados para saber o final. A letra retrata a história de um homem que é atacado e tem consciência de que está morrendo. Pedindo a Deus por clemência, às autoridades por justiça pelo crime cometido contra ele, a canção passeia (com o auxílio da melodia, em especial do baixo que faz um tipo de batida de coração sintética aqui) pela consciência e delírio do homem que está ciente do destino que o aguarda, mas sem saber se deve continuar resistindo ou nutrindo esperanças de socorro. 

Com uma grande referência a si mesmos, a nona faixa do álbum, Walk a Mile é a canção de The Dream que poderia ter sido parte de An Awesome Wave. A faixa de 6:29 minutos é um deleite sonoro para os ouvidos para quem gosta da banda. Com os vocais agudos já característicos de Newman, o chocalho presente de Unger-Hamilton e a bateria pontual de Green, a música é exatamente o que parece: uma composição feita sob o efeito de drogas. Nesse ponto, a letra nada mais é do que um acessório para o trabalho complexo que está sendo feito com os instrumentos. Embora seja longa, a canção funciona como interlúdio perfeito para o que está se tornando o fim do álbum.

Delta, décima canção do álbum, é, de fato, um interlúdio. Com seu 1 minuto de duração, a faixa faz um questionamento a respeito de fé. Eu não sou um homem religioso, mas vou me ajoelhar à isso. Um milagre acontecendo em frente a ele? Uma experiência extraterrestre  no delta do Rio Mississipi?

A penúltima faixa do álbum, Losing My Mind, inicialmente retoma o clima intimista já abordado anteriormente no álbum. Contando a história de um serial killer que se sente arrependido e questiona seus atos, mas não tem mais como voltar atrás. A canção tem um cunho especial para Newman, já que seu pai trabalhou para a Lucy Faithfull Foundation, que tem como objetivo reintegrar ex-criminosos à sociedade. 

Por fim, Powders encerra o álbum. A canção suave, que lembra vagamente alguns trabalhos de John Mayer, conta a história de dois adolescentes que estão se conhecendo, mas ainda não se assumiram, mas que tem potencial para se tornarem mais. Um final extremamente doce para um álbum ambíguo e que à primeira vista, pode parecer confuso. 

Lucidez ou loucura?

Olhando em retrospecto, o álbum não conta uma história clara. Não é sobre um término, sobre política ou uma grande crítica à sociedade. É tudo isso e nada disso ao mesmo tempo. Na realidade, é exatamente como nossos sonhos. Podemos viver tudo isso em uma noite apenas, ou ao longo de décadas. O que importa é que é no nosso momento mais íntimo, quando estamos isolados dentro de nossa própria mente, somos quem queremos imaginar ser. Seja um adolescente vivendo uma viagem de ácido numa tarde de domingo ou um homem prestes a morrer se agarrando à última centelha de vida.

Me apropriando brevemente do hábito de Joe Newman de fazer uso de elementos da cultura pop para compor, em Harry Potter e as Relíquias da Morte, o protagonista tem uma experiência de limbo: está entre a vida e a morte e tem a oportunidade de ter uma conversa com uma de suas figuras paternas, o diretor de Hogwarts, o já então falecido Alvo Dumbledore. Ao terminar essa passagem, Harry questiona: “Professor, tudo isso é real ou está acontecendo na minha cabeça?” e a resposta foi: “Harry, é claro que isso está acontecendo na sua cabeça, mas não significa que não é real.”. E essa é uma perfeita síntese de The Dream. 

O Alt-J não é para todos. Já afirmamos isso antes e agora, esmiuçando seu trabalho mais recente, é possível explicar mais claramente o motivo. O caos ordenado onde a banda encontrou prosperidade é espinhoso, sombrio e incompreensível para algumas pessoas. E está tudo bem. Porque nos nossos sonhos podemos ser quem quisermos ser, até mesmo quem não gosta de uma das bandas mais geniais em atividade. 

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