Meu destino não passa pelo poder, pela religião, por qualquer uma dessas entidades idiotas. Meu script é original, fui eu quem fiz. Por isso, não morro no fim. Essa foi uma frase dita pelo emblemático jornalista Millor Fernandes, mas poderia facilmente se encaixar em qualquer uma das etapas criativas de Childish Gambino, ou melhor, Donald Glover, durante sua carreira. O artista, que já havia anunciado aos fãs que “nos vemos no último álbum de Gambino” durante uma performance em 2016, nunca esteve tão perto de cumprir sua promessa.
O ROCKNBOLD já preparou uma lista de 10 artistas e bandas que devem estar no seu radar em 2020, entre pessoas que já estão consagradas na indústria musical e outras que ainda têm sua chance de chegar ao estrelato por completo. Entretanto, a análise dessa matéria propõe algo diferente: entender o fim de um artista.
Nunca foi surpresa para ninguém como Donald Glover, a verdadeira personalidade por trás da armadura rebelde e insana de Gambino, é um homem atarefado, que não se contenta com pouco e muito menos com períodos de tédio e mesmice. A prova disso é a ordem sequencial de todos os projetos em que ele se fez presente: desde séries da Netflix, filmes, dublando “O Rei Leão”, dentre outros. Porém, é interessante perceber como a construção dessa persona artística, totalmente diferente de Glover, nasceu e concebeu essa figura serelepe, totalmente hyper, que vem se transformando.
Para quem acompanha o artista desde o princípio, sabe que ele se destacou principalmente enquanto vivia o carismático Troy Barnes da série de comédia “Community”. A trama girava em torno do cotidiano de um grupo de adultos em aulas de uma universidade voltada para a comunidade, todos com seus dramas e núcleos que mesclavam a sátira, o sarcasmo e o tom irreverente, transformando a série num ícone da televisão americana. Entre os anos de 2009 e o início dos anos 2010, Donald Glover ainda era o ator queridinho das comédias, uma figura um tanto caricata. Sendo um dos principais destaques do enredo, de acordo com o criador, Dan Harmon, sua saída foi “a morte da série”. E é verdade. Glover era o principal sidekick, o alívio cômico na medida certa, e ainda que não fosse o personagem principal, para os fãs, era como se fosse.
Foi na saída de “Community” que Gambino nasceu. Com uma proposta de se aventurar na indústria musical e trazer mais força para o movimento R&B, hip-hop e afins, Glover lapidou Gambino com genialidade, dando a ele ingredientes que não cabiam para si naquele momento: rebeldia, mais ambição, e até um toque de agressividade, necessária para que o levasse até “This Is America“, que o consagrou como uma personalidade importante do ativismo negro americano e um dos maiores nomes da música no ano de 2018.
Com Gambino no cenário, Glover conseguia se aventurar também na carreira de comediante. Seu stand-up de maior sucesso, “Weirdo“, chegou a ser gravado em DVD em 2012, e, assim como as músicas de Gambino (é preciso entender a dualidade entre os dois, que são completamente diferentes, mas que interagem entre si numa mesma linha de raciocínio), trazia à tona assuntos pouco debatidos pelos profissionais dessa área. Ao invés de fazer piadas misóginas e autodepreciativas (para ele, especificamente, racistas), Glover sempre fez seu público questionar o machismo, que fez e ainda faz parte da criação da maioria dos homens, especialmente quando trouxe uma verdade que até hoje ecoa em debates pela internet: “todos os homens têm uma história sobre uma ex-namorada maluca, mas nenhuma mulher pode dizer o mesmo. Porque, se você é mulher, você sabe: se o seu ex-namorado é maluco, ele vai te matar”.
A acidez de Glover, que Gambino herdou posteriormente, o levou a patamares altos de atingir. Entretanto, é possível perceber que, em meio a tantas personas artísticos, o artista foi levado ao abismo da dissociação, onde, entre tantos rostos que eram o dele, ainda assim, ele não se via em ninguém. O clipe de “Sweatpants“, do álbum “because the internet“, exemplifica bastante essa fase.
Childish Gambino sempre foi uma estrela em ascensão, e não foi o declínio que o levou a cogitar um último álbum de sua carreira. Para Donald Glover, talvez sim. Não há como saber, uma vez que ainda em 2013, algumas anotações bastante particulares foram postadas por ele no Instagram. Houve especulações até de que se tratava de uma nota de suicídio, mas logo foi desmentido por ele, alegando que não se passava de um desabafo. Mas, se queremos entender o motivo de Glover querer “encerrar” a carreira de Gambino, as notas falam bem alto e esclarecem algumas coisas.
Tenho medo do futuro. Tenho medo que os meus pais não vivam o suficiente para ver meus filhos. Tenho medo que o meu show seja um fracasso. Tenho medo que minha mulher engravide antes do momento exato que queremos. Tenho medo de nunca alcançar meu potencial. Tenho medo que ela ainda esteja apaixonada por aquele cara.
As notas não pararam por aí. Nas partes seguintes, ele ainda explica que, diferente do que todos achavam, ele não saiu de “Community” para ser Gambino – embora ambas as coisas tenham acontecido quase simultaneamente, o que teria dado a entender que a morte de um seria o nascimento do outro.
Eu não saí de Community para fazer rap. Eu não queria fazer rap. Eu queria ficar sozinho. Eu estive doente esse ano. Eu vi um monte de gente morrer esse ano. Essa é a primeira vez que me senti incapaz. Mas eu não sou assim. Continue procurando por algo a fazer. Siga as pistas de alguém. Mas você precisa estar sozinho.
A verdade é que, no meio dessa trajetória, uma coisa Donald Glover sempre teve razão ao dizer: nada é para sempre. E está tudo bem gostar dos finais, das despedidas, e de virar a página. Childish Gambino nunca disse que estava aqui para ficar, embora, para muitos, ele tivesse todos os motivos do mundo para crescer cada vez mais e se tornar um dos gigantes ao lado de Kanye West e Jay-Z. Mas, ao mesmo tempo, Glover também compartilha uma insegurança que todo mundo da geração que ele atinge, a parcela mais jovem e que está se mergulhando em conhecimentos musicais, enfrenta: não saber o que o aguarda para o futuro.
Saber reconhecer a hora de parar é sempre importante. Mas, mais ainda, é entender o que fazer com tudo o que se conquistou até então. Sejam as vitórias, as derrotas, ou simplesmente os acontecimentos que você agiu indiferente, por não dar tanta importância. Glover soube disso no momento que deu à luz a Gambino, e, com a especulação do lançamento de um próximo álbum no ano que vem, que será o seu último, ele também saberá disso no momento do enterro de sua persona.
Eu tenho a sensação que estou decepcionando todo mundo. Tenho medo que as pessoas odeiem quem eu realmente sou. Tenho medo que estou aqui para nada. Eu tenho a sensação que isso pareça pretensioso. Tenho medo que isso seja tudo um acidente. Tenho medo de não saber de mais nada. Tenho medo que eu nunca tenha sabido nada. Tenho medo que nada disso importe.
Recentemente, Gambino está iniciando no Instagram e no Facebook (ambos @childishgambino) a divulgação do novo álbum, sucessor de “Awaken, My Love!” (2016), que ainda não tem data para lançamento.