O mundo dos sonhos pode ser confuso ou esquisito. Para Sevdaliza, é fonte de inspiração. É do fundo do inconsciente que a cantora irani-holandesa muitas vezes tira palavras e conceitos que depois se transformam em letras emocionantes ou visuais arrebatadores embalados por sua voz doce e penetrante.
O som experimental da artista (cujo nome real é Sevda Alizadeh) remete, em um primeiro momento, ao da colega Björk, numa mistura de trip hop, pop, R&B e um pouco de eletrônica com referências multiculturais que vão de Janet Jackson a lendas persas. Somam-se a isso letras que abordam temas como feminilidade, dores, amor, solidão e saúde mental e o resultado é um trabalho emocionante que equilibra força e vulnerabilidade.
“O que eu gosto na vida é tanto a magia como o terror”, disse em 2017.
Sevdaliza tinha apenas cinco anos quando se mudou com os pais de Teerã, capital do Irã, para a Holanda na condição de refugiados. Aos 16, saiu de casa para jogar basquete como bolsista e chegou a integrar o time nacional holandês. Aos 24, depois de se formar em um mestrado em comunicação e já fluente em farsi, holandês, inglês, francês e português, decidiu começar a fazer músicas por conta própria.
Foi durante uma visita ao Rio de Janeiro, aliás, que a cantora percebeu que queria seguir carreira na música. A realização veio enquanto praticava capoeira: foi aí que notou como gostava de “estar em ritmo com um grupo de pessoas” e refletiu sobre sua paixão por ouvir e escrever letras.
“Descobrir a palavra e o significado de ‘saudade’ mudou tudo para mim’”, disse à Vogue Brasil em 2019. “Essa sensação está constantemente presente nas minhas canções.”
Com três EPs, dois álbuns de estúdio – todos lançados sob seu selo independente, Twisted Elegance – e novos projetos a caminho, Sevdaliza vem conquistando uma presença cada vez maior e notável. Vem conhecer um pouco mais do trabalho dela:
Com a força de um cometa
Em ISON (2017), seu álbum de estreia, Sevdaliza trata de questões sobre “ser mulher” que vão desde a aceitação de seu corpo e sexualidade a poder e maternidade ao som de um trip hop orquestrado em faixas que quase soam como cânticos religiosos. “As canções refletem muitos medos e coisas que parecem sem limite, como crescimento e experiência”, disse em entrevista à época de lançamento.
ISON é o nome de um cometa, mas a artista dizia nunca ter ouvido falar nele antes: o nome simplesmente “apareceu” para ela enquanto pegava no sono. É desse álbum algumas de suas faixas mais conhecidas, como “Marilyn Monroe” e “Human”, inclusas em um projeto visual que acompanha o disco. O vídeo de pouco mais de uma hora explora detalhes da arte de capa – uma escultura hiperrealista da cantora criada por Sarah Sitkin.
Ancestralidade
Sevdaliza costumava contar em entrevistas que não cresceu ouvindo música iraniana e não identificava seu trabalho necessariamente com suas origens. Uma vez em um show, um professor de conservatório musical explicou a ela que seu jeito de cantar apresentava muitas notas centrais, uma característica da música persa; ela creditou o detalhe a algo que simplesmente estava dentro de si, em seu DNA.
Com o amadurecimento de seu trabalho, a artista passou a abraçar cada vez mais suas raízes. A faixa de abertura de ISON, “Shahmaran”, remete a uma criatura mítica que é metade mulher, metade cobra. O título de seu segundo álbum, Shabrang (2020), é o nome do cavalo de Siyâvash, um príncipe da mitologia persa associado à inocência na literatura iraniana. “Shabrang” significa “a cor do céu da noite”, traduzida visualmente na arte de capa como hematomas ao redor dos olhos de Sevdaliza – conceito que, novamente, veio a ela em um sonho.
É também em Shabrang que a artista apresenta uma versão da faixa pop “Gole Bi Goldoon”, originalmente interpretada em 1974 pela cantora iraniana Googoosh.
Sevdaliza também recorre às raízes para transmitir seu ativismo: em 2017, em resposta e protesto ao banimento do então presidente Donald Trump à entrada de cidadãos de sete países de maioria islâmica nos Estados Unidos, incluindo o Irã, a artista lançou a faixa “Bebin”, totalmente no idioma farsi. A canção foi escrita em apenas 48 horas com o produtor Mucky, seu colaborador de longa-data.
“[A minha conexão com a ancestralidade] é definitivamente algo que desenvolvi. Acho que meu trabalho, na verdade, me trouxe muito mais perto disso”, contou à Nylon em 2020. “Acho que você meio que começa a expor isso como uma espécie de reflexo, um espelho. Então você se olha no espelho e percebe que tudo veio de você.”
Visuais e tecnologia
Sevdaliza experimenta bastante com os elementos visuais que acompanham sua música, que ela descreve como “fortemente enraizados em tecnologia combinada com emoções cruas”. É através deles também que ela explora diferentes versões de si mesma – sem medo ou vergonha.
Ela fez sua estreia como diretora com o clipe de “Habibi”, um vídeo em preto-e-branco que retrata sua jornada em busca da retomada de seu poder próprio. Em junho de 2021, assinou junto com o artista Hirad Sab a “Shabrang Collectibles,” uma série com três NFTs.
Com os visuais, a cantora também constrói narrativas épicas em torno de seu trabalho. A mais recente marca o fim da era Shabrang, começando com “Genesis”, um vídeo que mostra Sevdaliza grávida em um outro universo – e que ficou disponível em seu canal por apenas 48 horas.
Sevdaliza depois introduziu Dahlia, a “primeira Femmenoide do mundo, especializada em servir às expectativas irrealistas de mulheres na sociedade”; em uma foto com o modelo, a cantora marcou Elon Musk.
Ainda são poucos os detalhes sobre o novo projeto, que alguns fãs especulam que pode ser um álbum visual – Sevdaliza chegou a curtir um comentário no Instagram que perguntava se essa seria sua “era techno”. Mas pelo que mostrou até agora, podemos contar com mais um trabalho grandioso e surpreendente vindo por aí.