Trent Reznor: a depressão e o isolamento em The Fragile

Terceiro álbum de estúdio do Nine Inch Nails completa 21 anos de existência neste mês e continua pertinente
Terceiro álbum de estúdio do Nine Inch Nails completa 21 anos de existência e continua pertinente através do sentimento entregue por Trent Reznor em um dos períodos mais delicados de sua vida

[TW]

No período após o lançamento e turnê do segundo disco, The Downward Spiral, de 1994, Trent Reznor contou ter um grande colapso emocional e mental. “Era como Ano Novo todas as noites. Eu tinha tudo que eu queria e eu não me sentia bem com isso”, contou para Rolling Stone, em 1999, “o que eu não tinha era satisfação espiritual”, completou.

Para se distanciar e descansar a cabeça de tudo que lhe incomodava, Reznor foi para uma casa em Big Sur, na Califórnia. “Eu achava que Big Sur seria um bom descanso. Foi puro terror, isolamento ao lado de uma montanha, com a loja de conveniência mais próxima a uma hora dali. Eu definitivamente não estava preparado para estar ali sozinho”, afirmou na mesma entrevista. Mas, ao final do ano, ele havia composto o que podia chamar de um “amontoado abstrato de um disco”.

Trent Reznor em apresentação por John Atashian
(Foto: John Atashian/Getty Images)

Depois disso, precisando de ajuda para direcionar e sequenciar o disco, Reznor contatou o produtor Bob Ezrin, que já trabalhou com Lou Reed, Kiss e Pink Floyd. Para a produção, contou com o auxílio de Alan Moulder, com quem já havia trabalhado em seu disco anterior.

Passados 5 anos desde o último álbum de estúdio, The Fragile é lançado. Um disco duplo, com 23 músicas e uma hora e quarenta e três minutos de duração. O disco atingiu o topo do Billboard, sendo o primeiro número 1 da banda nos charts e vendeu quase 230.000 de cópias na primeira semana.

Capa de "The Fragile", do Nine Inch Nails
(Imagem: Capa do Álbum The Fragile)

TEMA

Ao entrar no estúdio, Reznor buscou o conceito de fragilidade, e foi assim que ele ditou a abordagem da música, com letras que refletem a depressão e isolamento vivenciados pelo artista.

O primeiro detalhe a ser reparado é que o disco contém poucas letras, utilizando muito da repetição das mesmas. “The Fragile foi um álbum baseado em muito medo, pois eu estava assustado com o que estava acontecendo comigo. Por isso não há muitas letras no disco, eu não conseguia pensar”, contou para a revista SPIN, em 2005. Em outra entrevista, em 1999, ele contou que uma das propostas era fazer com que o álbum demonstrasse que havia algo inerentemente falho, como se alguém estivesse lutando para juntar todas as peças.

Essa jornada leva-nos por uma montanha-russa de emoções, com cada faixa, melodia ou letra apresentando uma faceta do que o artista sentia.

Temos momentos de solidariedade e ajuda em “We’re In This Together” e “The Fragile”; o desespero e medo da solidão em “Where Is Everybody?”; reflexões e sentimentos a respeito de um vício em “Please”. Ou da raiva e ódio em “Somewhat Damaged” até o arrependimento e pessimismo em “The Wretched”. Desde tudo isso, até a sensação de que o mais difícil já passou, mas em seguida ter uma gigante recaída, como em “Even Deeper”.

Além das faixas cantadas, o disco conta com sete faixas instrumentais, onde muito é dito sem a necessidade de uma verbalização. Como a melancolia presente em “La Mer”, a ansiedade em “Pilgrimage” ou até o sentimento de conquista e triunfo na “Just Like You Imagined”.

SONORIDADE

O disco marca um afastamento da sonoridade apresentada anteriormente. A sonoridade distorcida e cacofônica presente em The Downward Spiral dá espaço para passagens melódicas, com utilização de sons ambientes, corais e experimentalismo. As linhas vocais também propõem novas nuances à mesa, com trechos mais calmos e harmônicos, diferentes dos vocais mais gritados e raivosos expressos anteriormente.

A primeira grande mudança é apresentada em “The Day The World Went Away”, segunda faixa do primeiro disco. Baterias e sintetizadores pesados dão espaço para sons ambiente, guitarras acústicas e um vocal calmo. A faixa funciona como um crescendo musical, levando-nos a um final em que os instrumentos produzem diversas camadas enquanto Reznor e um coral cantam repetidamente “Na…na…nah”, como um lamento em uníssono.

O disco dispõe de uma vasta gama de influências e variações musicais. Temos a fúria e energia de “Somewhat Damaged” e “Starfuckers, Inc.”; o protagonismo do riff carregado da guitarra na “No, You Don’t”; a repetição rítmica fundida com funk em “The Big Comedown” e “Into The Void”; o minimalismo sintético de “I’m Looking Forward To Join You, Finally” ou a atmosfera introspectiva de “The Great Below”.

Nas faixas instrumentais, como em “The Mark Has Been Made”, que começa mais silenciosa com sons ambientes e uma percussão no fundo, até que somos carregados pela bateria que assume o protagonismo e nos carrega por todas as transições; em “Just Like You Imagined”, faixa que conta com a participação de Mike Garson, pianista de David Bowie, começa a progredir criando camadas sonoras que culminam em um final épico e, ao mesmo tempo, caótico; o interlúdio calmo e gentil de “The Frail” que nos arremessa em uma das faixas mais sombrias do álbum, “The Wretched”, ou as paisagens sonoras criadas com sons ambientes e sutilezas na última música do segundo disco, “Ripe (With Decay)”.

Já em “La Mer”, um piano e um violoncelo abrem caminho para sussurros em francês, de Denise Milfort, e em seguida uma bateria com um toque de jazz e uma linha de baixo que poderia estar em um disco do Red Hot Chilli Peppers, já que é puro funk, adentram uma das músicas que mais demonstra a evolução de Reznor como compositor.

NARRATIVA E REUTILIZAÇÃO DE MELODIAS

Apesar da diferença estética de música para música, todas conseguem fazer parte de um todo maior, completando uma narrativa. Para reforçar essa ideia, as faixas possuem reaparições de melodias ou letras de outras músicas.

Há uma melodia de três notas presente em “The Wretched”, que também está no início e encerramento de “We’re In This Together” e reaparece na primeira metade de “The Great Below”. Além disso, o piano e a linha de baixo de “La Mer” são reutilizados em “Into The Void”.

Também ao final do primeiro disco, em “The Great Below”, no trecho final a letra repete a frase “I can still feel you”, e a mesma letra reaparece na penúltima faixa do segundo disco, “Underneath It All”, com o mesmo ritmo.

Além do pertencimento a uma narrativa, Reznor também demonstra a mistura e confusão de emoções que teve naquele período, com melodias aparecendo em músicas de sentimentos e atmosferas completamente diferentes que se entrelaçam no decorrer da jornada.

CONTEXTO ATUAL

Apesar de 21 anos de idade, o disco não envelheceu um dia e se torna cada vez mais relevante, seja no quesito da mensagem ou musicalidade. Trent Reznor escreveu coisas que ainda perturbam a sociedade nos dias atuais.

Hoje, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), cerca de 5.8% da população brasileira tem depressão, o que corresponde a mais de 11,5 milhões de pessoas. Durante a pandemia, o atendimento a casos e tentativas de suicídio aumentou, segundo bases de serviço do SAMU, no litoral e interior do Estado de São Paulo, apurado pelo UOL.

Dada a crise sanitária que estamos passando, o consumo artístico também subiu. Segundo um estudo elaborado pela Conviva, plataforma de monitoramento de streaming, a audiência dos serviços de streamings de audiovisual (Netflix, Amazon Prime Video, HBO Go, etc.) cresceu 20% desde o início da pandemia, e, se comparado ao primeiro trimestre de 2019, os três primeiros meses de 2020 apresentaram um aumento de 79% em horas vista sob demanda. Outro levantamento, realizado pelo DeltaFolha, que analisou músicas do Top 200 do Spotify em 34 países, constatou que o Brasil é onde a variação de tristeza foi a maior desde o começo da quarentena. O consumo de música cresceu 15% no Brasil, de acordo com a lista de mais ouvidas no Spotify.

(Foto: Hagen Hopkins/Getty Images)

De fato muita coisa mudou no mundo desde 1999, mas acima de tudo, passamos a dar uma atenção maior à importância da conservação da saúde mental, ainda mais em um período de isolamento social. Sabemos que a arte pode funcionar como uma espécie de refúgio, seja para distração, conscientização ou identificação. O ser humano se desenvolveu durante toda história com a arte, é impossível a saúde estar dissociada dela.

The Fragile lida com a realidade vivida por um homem em um período com pouca discussão sobre o assunto. Em quase duas horas, Trent Reznor demonstra toda sua fragilidade da forma mais honesta possível, caminhando por uma infinidade de sensações que refletem a turbulência de um momento delicado de sua vida.

O que é mais potente e permanece com o ouvinte após essa experiência, é a identificação. O entendimento de que o sofrimento não é algo apenas nosso. É reconfortante e nos traz menos solidão. E não apenas quem vive a depressão consegue se relacionar com cada palavra dita. Por mais difícil que seja a experiência, a dimensão musical aqui se estende para todo e qualquer indivíduo de uma forma empática, de modo a criar uma maior atenção com a saúde mental alheia. 

Os tempos são difíceis. Continuamos isolados e distantes fisicamente de pessoas com as quais nos importamos. A crise sanitária ainda se demonstra presente. Nessas horas, a compreensão de que partilhamos a dor nos lembra que isso faz parte do ser humano e que não estamos sozinhos. Como o próprio Reznor ressaltou em 1999: “nós vamos passar por isso de alguma forma“.

Trent, inclusive, acabou de ganhar um Emmy pela trilha sonora de Watchmen.

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