Foi em um quartinho na Vila Formosa, Zona Leste de São Paulo, que Gloria Groove oficialmente nasceu. Àquela altura, Daniel Garcia – nome de nascença da artista – já tinha mais de uma década de carreira no showbiz, colecionando passagens dos palcos da igreja aos shows de calouros e referências musicais de dentro de casa, das ruas do bairro em que cresceu e do patamar de divas que ela sonhava um dia alcançar. É dessa mistura de universos que surge Lady Leste, uma verdadeira odisseia pop pelas raízes e inspirações da drag queen.
O segundo álbum de estúdio chega cinco anos depois do estrondoso O Proceder (2017), trabalho mais apoiado no rap com singles de sucesso como “Dona” e “Gloriosa”. Desde então, Gloria ganhou ainda mais destaque com o funk pop de “Bumbum de Ouro” e “Coisa Boa” e parcerias com IZA, Manu Gavassi e Ludmilla.
Mais recentemente, a artista apresentou uma era totalmente R&B com o EP Affair (2020) e mostrou uma versatilidade surreal ao participar (e vencer) do “Show dos Famosos”, onde encarnou desde Justin Timberlake e Xanddy a Marília Mendonça e Jennifer Lopez.
Quando criança, Daniel fez parte do grupo infantil Balão Mágico e depois passou um tempo cantando na igreja, onde teve forte contato com soul e black music. Mas uma de suas maiores referências estava dentro de casa: sua mãe, Gina Garcia, que desde 1993 é backing vocal do grupo Raça Negra. Foi por meio dela que conheceu a música de nomes como Gloria Gaynor e Mariah Carey, depois acompanhados de referências como Usher, Lil’ Kim, Missy Elliot e Amy Winehouse.
O próprio nome de Gloria Groove é inspirado na grandiosidade das iniciais “GG” da mãe e, não à toa, Lady Leste é descrito pela artista como “uma carta de amor para as mulheres da minha vida.” Mas o álbum é, especialmente, onde toda essa bagagem e versatilidade da cantora se encontram, resultando em seu trabalho mais diverso até agora, traduzido inteiramente em uma veia pop.
“O lado ‘lady’ é [voltado para] onde sei que estou indo e aonde posso chegar”, Gloria Groove disse em coletiva de lançamento, em referência ao sucesso de outras “ladies” como Lady Gaga. “Mas sem esquecer meu lado ‘leste’, que é o lugar que cresci, moro e que está no meu coração”.
O álbum
Lady Leste abre com força com “SFM”, parceria com o funkeiro paulistano MC Hariel, com elementos de rave e guitarras pesadas que continuam em “BONEKINHA”, single funk trap que abriu a era em 2021.
A temperatura continua subindo em “VERMELHO”, que presta homenagem direta a MC Daleste, morto em 2013, ao samplear e citar o funk “Mina de vermelho” (2012). “FOGO NO BARRACO” fecha essa primeira seção viciante com pinceladas do funk carioca e versos de MC Tchelinho.
As influências do hip hop e R&B dos anos 2000 aparecem nas excelentes “JOGO PERIGOSO”, “GRETA” e “PISANDO FOFO”, esta última uma parceria com a dupla de rappers paulistanas Tasha & Tracie que remete bastante à cadência apresentada em O Proceder, enquanto “LSD” resgata a suavidade e sensualidade da era Affair.
Já “LEILÃO” e “A QUEDA” elevam o lado lúdico do álbum à última potência. Ambas já haviam sido lançadas como singles em 2021 e trazem críticas à relação entre dinheiro, arte e sucesso e à cultura do cancelamento, respectivamente, com visuais de tirar o fôlego sob direção de Felipe Sassi. E ambas rapidamente se tornaram hit: lançada em outubro, “A QUEDA” se tornou o clipe pop de artista solo brasileiro mais visto e curtido no ano.
Mas é na emocionante “SOBREVIVI” que Gloria Groove traz os vocais mais arrebatadores ao lado de Priscilla Alcântara, de carreira consolidada na música gospel. As guitarras retornam, fechando o ciclo do álbum de forma triunfal.
As curvas inesperadas de Lady Leste vêm no romance do pagode “TUA INDECISÃO”, parceria suave com Sorriso Maroto que poderia muito bem estar em um álbum do grupo lá dos anos 2000, e o arrocha “APENAS UM NENÉM”, com a sensação Marina Sena. Apesar de serem muito bem trabalhadas e mostrarem a versatilidade da artista em gêneros inéditos, as faixas acabam perdendo destaque em meio a tantos outros fortes candidatos a hit.
Os colaboradores frequentes Pablo Bispo e Ruxell assinam a produção do álbum, criando um universo bem amarrado e coeso em que cada faixa complementa a anterior de forma envolvente. O poder de Gloria Groove é tamanho que Lady Leste se tornou o primeiro lançamento brasileiro a ganhar a funcionalidade “Álbum Clips” no Spotify, vídeos exclusivos de 30 segundos que expandem o trabalho e, de quebra, teve todas as faixas estreando no top 100 da plataforma no Brasil, além de alcançar o topo global no chart de lançamentos.
Do começo ao fim, Lady Leste é um trabalho irresistível e potente que consagra Gloria Groove como um dos maiores nomes do pop brasileiro – e mostra que a “bonekinha” realmente não poderia ficar confinada a uma caixa.
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