Manu Gavassi tinha apenas 17 anos quando lançou seu primeiro álbum de estúdio homônimo em 2010 e deslanchou como ícone teen. Ao longo da década seguinte, sua carreira evoluiu e se expandiu para além da música, com um distanciamento cada vez maior daquela figura adolescente. Eis que, com GRACINHA, seu mais novo lançamento, a artista parece finalmente fazer as pazes com a “menina da headband”: ingênua, sonhadora, destemida.
Quem conheceu Manu durante sua passagem pelo Big Brother Brasil em 2020 pode estranhar a abordagem estética e sonora do novo disco. Marcada por seus vídeos divertidos e figurino colorido no programa, a cantora apresentou um pop dançante logo depois de sair do confinamento com as faixas “Eu Te Quero”, com Zeeba, e “Deve ser horrível dormir sem mim”, com Gloria Groove.
Já em GRACINHA, o ouvinte é apresentado a um pop muito mais suave e delicado, com inspirações de R&B, lo-fi, jazz, MPB e indie pop francês – com pitadas de Hannah Montana e Molejo, porque por que não?
O álbum foi gravado em uma casa alugada onde Manu se isolou (fisica e digitalmente) com sua equipe, incluindo o produtor Lucas Silveira, da Fresno, e sua família. O resultado é um trabalho intimista e com “imperfeições” que lhe conferem ainda mais personalidade, como a risada vazada da pequena Sky, filha de Lucas, e o som de um chuveiro gotejando ao fundo.
“[Gracinha] me lembra aquela menina que deixava o sentimento vir e só escrevia”, Manu escreveu em um texto publicado na véspera do lançamento. “Que sonhava com uma melodia e acreditava nela. Que abria a boca e só cantava. Que pegava o violão e sempre tinha algo a dizer. Que não se julgava.”
Toda a atenção pós-BBB parecia estar “travando” a cantora em um embate entre dar ao público o que ele esperava para manter aquela relevância ou se arriscar e experimentar novos elementos. Ela optou pelo segundo caminho.
Não à toa, o trabalho abre com o verso “Cansei de fazer gracinha”, da faixa-título “GRACINHA”, com participação de Tim Bernardes (O Terno) e Amaro Freitas. Com uma melodia doce e um quê de Elis Regina, Manu faz um desabafo: “Quanto mais gracinha eu faço, mais quebrada estou por dentro.”
O tema retorna e se desenvolve em “Bossa Nossa”, “dedicada a todos que já reviraram os olhos para mim,” como ela explica no storytelling da faixa no Spotify, e no indie-pop “CANSEI”, que explora como mulheres e meninas têm sua arte subestimada e menosprezada.
A inspiração francesa aparece logo em “Eu nunca fui tão sozinha assim”, com participação de VOYOU, que traz uma batida leve para descrever a sensação de sair de um reality show para um mundo virado de cabeça para baixo. O mergulho francófilo continua com o divertido eletropop “Tédio”, com participação de Alice et Moi, que troca algumas “coisas em francês sem sentido” com Manu.
Os momentos mais doces e emocionantes ficam por conta de “(não te vejo meu)”, inspirada na literatura de Clarice Lispector, e “Catarina”, declaração de amor de Manu para sua irmã e fiel companheira. Já as batidas mais envolventes vêm em “sub.ver.si.va”, uma versão mais tranquila do pop de rádio de “Deve ser horrível…”, e “Reggaeton triste”, com o músico de Barcelona Vic Mirallas, uma interpretação envolvente do gênero com um toque de lo-fi.
Álbum visual
Manu Gavassi é conhecida pelo forte envolvimento com a apresentação visual de seu trabalho, e não poderia ser diferente com GRACINHA. Em dezembro de 2020, antes mesmo de gravar o disco, a cantora apresentou ao Disney+ uma proposta de narrativa visual que enriquece ainda mais o álbum.
O filme acompanha Gracinha, interpretada por Manu, uma artista incompreendida em um universo mágico e lúdico inspirado pelo teatro itinerante brasileiro. Paulo Miklos, ex-Titãs, dá vida ao antagonista Baselitz, que representa o lado mais comercial da indústria do entretenimento. O elenco principal tem também Ícaro Silva, Fábio Porchat, Titi Ewbank Gagliasso, João Côrtes, Amaro João de Freitas Neto, Samuel De Saboia e João Mandarino.
Com direção criativa e roteiro de Manu, que co-dirigiu o trabalho com Gabriel Dietrich, da O2 Filmes, o projeto visual dá um tom ainda mais delicado para o disco com sua teatralidade fantástica que coexiste com Nirvana, Tamagotchis e galões de água de escritório. O especial é todo coreografado – outra insegurança pública superada pela cantora, que treinou balé contemporâneo durante três meses em preparação –, com direção de coreografia e movimentos assinada por Maitê Molnar.
O trabalho é repleto de easter eggs sobre a carreira e inspirações de Manu, além de detalhes profundos como a escolha do cenário: o projeto foi filmado no Teatro Municipal Casa da Ópera, em Ouro Preto, Minas Gerais, o mais antigo teatro em funcionamento da América Latina. Consciente do passado escravocrata da região, a cantora propositalmente colocou um casal negro como rei e rainha do local (outro easter egg que já havia aparecido no clipe de “sub.ver.si.va.”).
Juntas, as partes visual e sonora de GRACINHA tornam o projeto muito mais interessante e acertado. O filme aprofunda os sentimentos das canções de forma encantadora, enquanto o álbum sonoro (que totaliza apenas 27 minutos) é uma deliciosa companhia para momentos mais tranquilos. Para além da maturidade artística, Manu Gavassi mostra uma segurança incrível em seu trabalho e em se arriscar em projetos ousados que a distinguem no mercado nacional. E comprova como se libertar de fórmulas é, muitas vezes, a melhor opção.