Rapper tornou o melhor trabalho da carreira em um dos maiores álbuns de rap de todos os tempos ao ecoar a voz dos negros em uma sociedade indiscutivelmente racista
(Por Gêra Lobo e Matheus Izzo)
Kendrick Lamar sempre foi um artista altamente presente quando os assuntos envolvem questões raciais e o combate contra preconceitos. Todos os seus trabalhos são focados na história de seu próprio povo, o que fez o rapper ganhar notoriedade no mainstream do hip hop com suas composições extremamente fortes e corajosas, que além de serem muito necessárias para a transmissão da mensagem que infelizmente muitos ainda tem dificuldade de assimilar, soam exatamente como roteiros de clássicos do cinema (Jordan Peele e Spike Lee, essa é pra vocês). A diferença das obras de Kendrick para os longas de Peele e Lee é simples: o rapper não quer seguir apenas uma direção. Lamar fala para multidões, representa centenas de milhares e ensina o que deveria ser óbvio desde o início da existência àqueles que tentam apagar da história uma das culturas mais ricas da humanidade. Direta ou indiretamente, o artista aparentava na metade da última década possuir um único motivo: mostrar ao maior número de pessoas como o racismo sistêmico e estrutural continua destruindo a vida e a história dos negros nos Estados Unidos e em todo o mundo.
Vivemos em um momento muito importante na luta contra a desigualdade racial. Centenas de protestos e manifestações contra a morte de cidadãos negros tomaram conta das ruas dos maiores países do planeta nas últimas semanas. Nos Estados Unidos, George Floyd, de 46 anos, foi assassinado por um policial enquanto clamava por ajuda, e no Brasil, João Pedro, de 14, foi sequestrado e morto pela polícia do Rio de Janeiro enquanto brincava com os primos. Estes casos absurdos trouxeram à tona mais uma vez o movimento Vidas Negras Importam (Black Lives Matter), que visa pedir justiça pelo povo negro que em pleno 2020 ainda sofre diariamente com o discurso de ódio e o preconceito. Para assinar as petições, clique aqui.
Querendo ou não, o hip hop tem um poder muito grande nessa luta, já que a cultura surgiu justamente como forma de escrever na história a importância das criações originadas do povo. Dito isso, Kendrick Lamar é, talvez, o maior exemplo entre os nomes do cenário atual. E nos arriscamos a dizer que também um dos maiores de todos os tempos.
K-Dot age fora da mídia e isso é ainda mais importante quando jovens ao redor de todo mundo buscam referências que realmente atuem contra a discriminação. É claro, há na história nomes como Tupac, Notorious B.I.G, Dr. Dre e vários outros, mas a abordagem de Lamar em pleno século XXI é a mais precisa de todas. Isso fica claro em um dos maiores exemplos de representatividade no rap da atualidade, To Pimp A Butterfly.
O terceiro disco de estúdio do rapper (que originalmente era chamado de “Tu Pimp A Caterpillar”, abreviado TUPAC, por conta da admiração de Lamar por um de seus maiores ídolos), foi um verdadeiro marco na história do hip hop. Lançado em 2015, o trabalho traz uma mistura simplesmente impecável de variações dos estilos da música negra como jazz, soul e funk, além, claro, do rap que só Kendrick Lamar sabe fazer. Muito além da sonoridade, o disco é especial pela “raiva”, coragem e fúria do artista ao escrever letras confrontando os racistas mundo afora.
Seus comentários em cima da política discriminadora e injusta dos Estados Unidos com foco em temas como a brutalidade da polícia e das grandes corporações contra seu povo, além da honestidade ao abordar doenças como depressão e ansiedade, são pontos importantes demais a serem tratados, ainda mais no contexto atual. A representatividade do rapper nas comunidades, principalmente em Compton, sua cidade natal, foi gigantesca. Tudo foi gravado na região, praticamente, com ele valorizando bastante suas raízes e mostrando toda as batalhas destas pessoas contra a discriminiação no mundo. E é nisso que queremos focar nesse texto.
From Compton to Congress, set trippin’ all around (…)
Ain’t nothin’ new, but a flu of new Demo-Crips and Re-Blood-licans,
Red state versus a blue state, which one you governin’?
They give us guns and drugs, call us thugs, make it they promise to fuck with you.”
Claro que racismo e desigualdade não são assuntos recentes, bem longe disso. Porém, o crescimento assunto e as lutas cada vez mais recorrentes contra o absurdo só mostram a importância de um trabalho como esse no momento atual da sociedade contemporânea. Tanto lá quanto aqui, percebe-se que há no discurso conservador e autoritário de ambos os governos a clara vontade de definir a população negra como parte das minorias (e aqui não estamos desmerecendo qualquer outra luta ou movimento social social) na tentativa de voltar a excluí-los de parte do convívio social. O que Lamar aborda no disco é simplesmente uma consequência do que a elite branca faz com a população negra desde sempre, que foi e infelizmente ainda é totalmente abusada com violência e desrespeito.
A luta de Kendrick consegue ser destrinchada e muito bem explicada em praticamente todas as faixas do disco. Pode-se dizer que o maior exemplo é a canção e single “Alright“, que virou uma espécie de “trilha sonora” do movimento Black Lives Matter por contar todas as dificuldades e lutas do cidadão negro inserido em uma sociedade racista, da queda do próprio orgulho e da violência que o eu-lírico e seu povo sofre nas mãos de pessoas que não entendem tal luta. Além disso, Kendrick faz questão de relembrar que “tudo vai ficar bem“, uma mensagem poderosa de apoio, esperança e positividade em meio a tanto caos.
Entretanto, o álbum não é extraordinário apenas por conta de “Alright”, já que quase todas as outras quinze músicas também merecem destaque. “The Blacker The Berry“, uma das últimas faixas, também demonstra uma crítica forte e muito pesada sobre os assuntos já abordados acima. Ela trata de maneira agressiva (observa-se isso na forma como Kendrick performa a canção) todo o racismo, ódio e hipocrisia em cima dos afro-americanos, com versos pesados como: “Você me odeia, não é? Você odeia meu povo, seu plano é exterminar minha cultura. Você é muito malvado, quero que você reconheça que sou um macaco com orgulho“. É simplesmente uma track muito distante da superficialidade mas muito necessária por demonstrar a raiva de um povo que nunca mereceu tamanho genocídio por tantas centenas de anos. E isso continua acontecendo, em um 2020 onde não deveria haver mais espaço e/ou diálogo para com racistas.
O disco apresenta as várias facetas de Lamar nas músicas. Enquanto “King Kunta” fala sobre a história de estereótipos negativos dos afro-americanos, em “Wesley’s Theory“, faixa que abre o disco, Kendrick diz que “ninguém ensina os negros pobre como se administrar dinheiro ou celebridade, portanto, se eles obtiverem sucesso, os poderes existentes poderão levá-los logo abaixo deles“. O objetivo do rapper com To Pimp A Butterfly era falar sobre tudo que envolve a própria cultura (e isso pode ser interpretado já na capa do disco, onde o artista aparece ao lado de familiares e amigos rodeados de dinheiro), também abordando a fama, sentimentos amorosos e doenças psicológicas/emocionais.
To Pimp A Butterfly, além de ser uma obra-prima e sustentar-se por si só, é um disco bem maior que sua sonoridade ou mistura de estilos diversos da música negra. O que esse trabalho representa desde que foi lançado há cinco anos é algo imensurável. Encaixa-se perfeitamente em todos os momentos de luta que vivemos em mundo que é movido por ódio e discriminação de um ser humano por conta de sua cor e origem. Kendrick sempre foi um dos principais responsáveis nessa luta e continuará sendo. Seus discos falam por todo um povo.
Não que prêmios ou números signifiquem algo maior do que a mensagem por trás do trabalho, mas esta obra tanto se tornou um marco da luta racial que voltou a figurar no top 100 discos da Apple Music neste mês de junho, exatamente por tantas pessoas relacionarem esses protestos e manifestações contra racismo ao trabalho do rapper. Isso explica bastante a importância dele nesse momento. Terceiro álbum do americano também foi o vencedor de dezenas de prêmios em 2015, levou para a casa o Grammy de “Melhor Álbum de Rap” de 2016 (o que surpreende já que a Acadêmia continua discriminando artistas negros ano após ano), é um dos trabalhos mais bem avaliados da história das revistas Rolling Stone e Pitchfork, além de também ser um dos discos mais aclamados da história da música.
Em momentos como esses, muitos usam da arte para expressarem os próprios posicionamentos e visões. É claro que nas individuais particularidades não há como se limitar um artista, mas é preciso urgentemente que todos se posicionem contra a discriminação. Quando você mascara seus preconceitos ao tentar justificá-los como liberdade de expressão ou omite seu repúdio a manifestações racistas, você é parte do problema. Julgamentos ou discriminações por conta da cor da pele de um ser humano DEVEM ser considerados vários dos maiores absurdos da existência da humanidade.
A arte é um bem necessário, histórico e extremamente importante na busca pela justiça social. To Pimp A Butterfly é o exemplo perfeito de como uma obra pode ensinar e se tornar referência em prol da evolução de uma sociedade mais inteligente e um pouco menos próxima do ódio.
Político, furioso e corajoso, terceiro álbum da carreira de um dos maiores nomes da história do hip hop – que ajudou a alavancar o gênero para o mainstream da indústria – entrega a diversos públicos o que deveria ter se aprendido há muito tempo: o mundo que conhecemos hoje não seria o que é se não fosse pelo povo e pela cultura negra.
Preciso, essencial, robusto, corajoso e extraordinário.
10/10.
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