Cantora abre caminho para conquistar novos fãs em Plastic Hearts ao trazer inspirações do rock oitentista e noventista, contando também com participações especiais de grandes nomes do gênero
Por Leonardo Neto e Luana Harumi
Todos os fãs de carteirinha da Miley Cyrus já estão acostumados com a grandiosa artista multifacetada que ela é, já que a cada trabalho é uma transformação distinta na identidade pessoal e também no conceito musical. E no conjunto de toda essa revolução, é comum se enxergar o florescimento de uma diferente faceta da artista com muita autenticidade e segurança em si e no que faz a cada nova etapa da carreira.
Em Plastic Hearts, sétimo álbum de estúdio da discografia, Miley dá vida a uma nova persona artística, e brinda o público com um álbum que flerta bastante com diversas referências do rock clássico dos anos 80 e 90, trazendo participações que, para ela, sempre foram grandes inspirações em toda sua carreira artística como Joan Jett (da banda Joan Jett & The Blackhearts e The Runaways) e Billy Idol – músico foi uma explosão comercial logo no início dos anos 80 e continuou acumulando trabalhos icônicos durante toda sua trajetória.
Logo de início, podemos dizer que se aquela clássica trivialidade dita por diversas pessoas que “todo álbum épico precisa de uma boa música de abertura” para prender a todo resto que está por vir, “WTF Do I Know” passa no teste. Ela preenche todos os requisitos do conceito mais ligado ao rock que Miley almejou alcançar. Mesmo sendo uma música bem curta, logo nos seus primeiros segundos já traz um baixo bem poderoso e que prende a atenção. A track traz certa intensidade crescente do início ao fim, e vai ganhando ainda mais corpo sonoro e aceleração até explodir no refrão, onde fica extremamente enérgica como todo bom “rock radio”. Cyrus entrega logo de cara, na primeira faixa, todo o conceito prometido para esta nova fase.
Já na música que intitula o álbum, é possível notar uma infinidade de linhas instrumentais a cada parte da música. “Plastic Hearts” traz tantas sensações boas ao ouvir que é difícil encaixa-la em somente um estilo, principalmente pela imensa versatilidade que ela apresenta ao longo de 3 minutos, que vão desde a percussão no bongô ecânticos em coro até um solo de guitarra com distorção memorável. A grande animosidade trazida por essa faixa ao ouvi-la, deixa o ouvinte com o sentimento de estar passeando de carro conversível num verão em Malibu, e através de todas essas percepções positivas, é possível perceber que ela tem um grande potencial para se tornar single.
“Angels Like You” é uma música extremamente agradável e bem produzida, mas que, por ter sido mal posicionada, acabou perdendo um pouco do seu brilho quando pensamos no conceito do disco por completo. Para quem foi buscar uma musicalidade viva e pesada no trabalho, a track diminui o ritmo muito cedo no álbum, e de modo escancarado, traz a música para uma estética mais country, melancólica e bastante sentimental. É possível ver de longe que o conjunto desta track tem um pitada de inspiração no seu pai, Billy Ray Cyrus, que é uma grande referência da música country desde os anos 90 nos Estados Unidos. Sem dúvida esta é uma fonte em que Miley Cyrus bebe desde berço e que jamais deixará de lado, por mais oposto que seja ao que vem mirando neste momento da sua carreira.
Para os fãs mais saudosistas, na quarta música do álbum, “Prisoner”, a cantora traz, principalmente no clipe, uma vibe bem libertina, livre e erótica, estética bastante semelhante e presente na era Bangerz, de 2013. Entre o preto de Joan Jett e as cores de Stevie Nicks, a parceria é um match perfeito de duas das artistas mais talentosas da nossa geração, que estão no mesmo ano utilizando de referências oitentistas do pop e também do rock como conceito de seus álbuns. Dua, inclusive, foi indicada ao Grammy por Future Nostalgia. A faixa carrega e muito as identidades atuais que ambas assumem em seus projetos, trazendo um vocal bem rasgado inspirado em The Runaways nos trechos em que Miley está presente, e uma baladinha eletro pop oitentista inspirado no sample de “Physical”, de Olivia Newton-John, no refrão cantado pelas duas. Vale lembrar que o álbum Plastic Hearts tem a mão de Andrew Watt na sua criação, o mesmo que produziu o hit “Break My Heart” da Dua Lipa.
Cyrus foi muito inteligente na escolha das participações especiais no álbum, trazendo referências antigas que se alinham ao conceito do que ela estava desejando produzir, porém não esquecendo também de adicionar artistas mais reconhecidos nos dias atuais para despertar a curiosidade nos mais jovens sobre seu novo trabalho.
Na sequência, “Gimme What I Want” é uma música que se mantém agressiva desde os primeiros segundos, com uma linha de baixo bastante marcante que traz muito suspense e desperta excitação, pois instiga muita curiosidade sobre o que está por vir adiante. Composta por uma estética bem espacial por conta dos synths, a música carrega um contraste bem interessante, já que ao mesmo tempo que a voz de Miley apresenta bastante efeitos de distorção de pós produção, a linha instrumental da música é bastante orgânica e limpa, com uso constante de bateria eletrônica e riffs de guitarra bem funkeados. Excelente faixa.
Em seguida somos presentados com “Night Crawling“, parceria de Miley Cyrus com uma das maiores referências artísticas que ela possui em sua carreira, o ícone rockstar britânico dos anos 80, Billy Idol. O feat rendeu uma das músicas mais brilhantes do trabalho, pois esta faixa não só usa e abusa de diversos elementos eletrônicos na música, como carrega também um fenomenal vocal bastante rasgado de ambos artistas no refrão, deixando explícito que há muitas referências das grandes bandas e cantores do hard rock clássico neste hino.
Já na sétima canção do disco, que havia sido lançado como single antecedente ao álbum, Miley entrega, sem dúvida, o seu trabalho mais rico e completo como artista. E para sustentar essa afirmação, basta ver a explosão de plays que a música teve desde o seu lançamento. “Midnight Sky“ não só continua em ascensão, como já alcançou o topo de mais ouvidas em todas as páginas de streaming da cantora, mas se você acha que é somente por isso, se engana. A track é o retorno da carreira musical de Miley após um ano e meio sem lançamento, e agora, como ela mesmo diz em entrevistas, sua volta acompanha uma nova fase com 101% de foco na sua evolução artística. A música traz ricas referências visuais e sonoras do pop oitentista, misturando também elementos musicais de bastante destaque dos anos 70 como a disco music. Na canção é totalmente perceptível as claras referências trazidas da era Erótica (1992) de Madonna, desde sonoridade até seus ousados trejeitos no clipe. Além de entregar uma música que beira a perfeição do pop moderno, Cyrus botou a mão na massa e foi além, sendo responsável por atuar na direção do seu próprio clipe de retorno.
“High” talvez seja o calcanhar de Aquiles de um álbum que tinha tudo para ser irretocável, daqueles que você ouve sem pular nenhuma música. Ela possui elementos instrumentais e cadência de ritmo que flertam bastante com o folk, e por esse motivo desarmoniza com qualquer outra faixa produzida em Plastic Hearts. De ponto positivo, somente a escolha por inseri-la no meio do álbum, evitando uma quebra de expectativa cedo como foi com Angels Like You, para um trabalho que prometia uma estética sonora mais fulgaz.
Se a primeira e majoritária parte do álbum carrega sonoridade mais enérgica, é nesta seção que o trabalho assume um ritmo mais plácido. A festa está chegando ao fim: a euforia dá lugar à sobriedade e a um tom ainda mais confessional e sentimental. Em “Hate Me”, um mellow mais próximo do pop atual, ela parece instigar um amante a assumir que acha que, mais uma vez, as coisas não deram certo e a culpa está em seus ombros. Não apenas isso, mas ela imagina que sequer passa pelos pensamentos do interlocutor.
Já em “Bad Karma”, parceria com a veterana Joan Jett, voltamos ao rock, desta vez com uma pegada mais lúdica – e que deixa ainda mais evidente a semelhança na atitude entre as duas vozes. Se a guarda havia baixado na faixa anterior, aqui temos uma posição mais provocativa, um manifesto de que Miley faz o que ela bem entender e que não está nem aí para o amor. Uh-oh. Na sequência vem “Never Be Me”, e a Miley sentimental entra em cena novamente. A canção funciona meio como uma carta em que a artista reconhece e abraça alguns dos defeitos que podem acabar atrapalhando um relacionamento, e que ela já cansou de tentar mudar: ela nunca será estável, fiel, ou tudo que alguém precisa, mas se o destinatário estiver disposto a superar essas diferenças, algo pode rolar. Bem aquela música de fim de baile de filme dos anos 1980, uma melodia lenta para dançar agarradinho com seu par.
O trabalho original fecha com “Golden G String”, praticamente uma canção de ninar que narra algumas impressões de Miley sobre os caminhos tortuosos da indústria musical americana, com passagens que parecem aludir especialmente à era Bangerz (2013), em que a artista era muitas vezes vista como “louca” e dominava os portais de fofoca de celebridades. A faixa, que já havia sido apresentada em uma Backyard Session este ano, termina com uma promessa: “I think I’ll stay”. Ela sempre se reinventa, muitas vezes é alvo de críticas, mas ir embora não é opção.
A seção final do álbum traz versões de Cyrus para outros hits clássicos, começando com “Edge of Midnight”, remix sensacional da já estupenda “Midnight Sky” com a faixa-sample “Edge of Seventeen”, com participação da intérprete original Stevie Nicks (Fleetwood Mac). Em seguida temos os covers ao vivo de “Heart of Glass”, de Blondie, apresentado por Miley Cyrus no iHeart Festival de 2020, e “Zombie”, de The Cranberries, interpretada no palco virtual do evento beneficente Save Our Stages Festival – performances excelentes que transmitem muito do poder vocal da artista.
Depois de dois anos de produção, com uma história de altos e baixos – inclusive a perda de muitos dos arquivos originais quando a casa de Miley foi totalmente atingida por um incêndio –, o álbum é, como a própria artista descreve, um trabalho de certa forma autobiográfico, e a sinceridade das composições eleva em muito o conjunto da obra. Mas vai muito além. A ajuda de nomes como o do produtor inglês Mark Ronson, com quem já havia colaborado com sucesso em “Nothing Breaks Like a Heart” (2019), também foi primordial para a realização da visão ambiciosa de Cyrus.
Apesar de alguns tropeços em relação à organização das faixas, em Plastic Hearts Miley Cyrus parece finalmente encontrar no rock um abrigo confortável para se expressar em potência máxima – entregando assim, um dos melhores trabalhos de sua carreira.
Highlights: “Prisoner“, “Gimme What I Want“, “Night Crawling“, “Midnight Sky” e “Bad Karma“.
9/10
OUÇA:
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