Após um longo e devastador ano, é possível afirmar que 2020, apesar dos pesares, foi um ano do pop. Enquanto nomes como Billie Eilish e Dua Lipa usaram seus trabalhos recentes para reforçar que chegaram na música para ficar, artistas veteranas como Lady Gaga, Katy Perry e Taylor Swift aproveitaram o momento para inovar – ou não – dentro do gênero e reafirmar sua autoridade mundial na música pop.
Embora a pandemia do coronavírus tenha impedido não só as artistas, como também os fãs, de aproveitar ao máximo o potencial dos lançamentos de 2020, é inegável que o bom momento artístico tenha ajudado tornar a pandemia um pouco menos insuportável. Isso se tornou evidente com a mudança na forma de consumir música a partir de redes sociais, como TikTok, na quantidade de artistas que vem se destacando com trabalhos independes em redes sociais e de artistas que resolveram retomar a carreira em meio ao caos mundial e, assim, entregar trabalhos artisticamente relevantes. Entre estes artistas, Miley Cyrus.
Em agosto, a cantora deu início à sua nova era divulgando a ótima ‘Midnight Sky‘, O excelente primeiro single do que prometia ser sua era de retomada definitiva na música após altos e muitos baixos em sua carreira. Com claras influências visuais e sonoras inspiradas no glam rock, “Midnight Sky” foi uma agradável surpresa em meio ao muitos lançamentos com sonoridade retrô, inspirados no pop oitentista. A faixa deveria ter sido parte do seu até então planejado EP, ‘SHE IS HERE‘, segundo lançamento do que seria uma trilogia iniciada em seu até então último trabalho de estúdio, o EP ‘SHE IS COMING‘, de 2019. Segundo a própria Miley, a trilogia seria concluída com o EP ‘SHE IS EVERYTHING‘, que unidos como um Power Rangers do pop, formariam o álbum ‘SHE IS MILEY CYRUS‘. O planejamento do Power Rangers do pop não vingou, e ganhamos o ótimo “Plastic Hearts“, seu sétimo álbum de estúdio. Ainda bem(?).
“Plastic Hearts are bleading“
Como costumam dizer nas redes sociais, Miley Cyrus entregou absolutamente tudo o que lhe pediam desde o álbum ‘Can’t Be Tamed‘, que para muitos, era até então o seu mais ousado e autêntico álbum, por se arriscar numa sonoridade mais intensa, agressiva e vulnerável dentro da música pop logo nos primeiros anos de carreira. Durante a era ‘Bangerz‘, outro trabalho que ditou o rumo de sua carreira, Miey teve a oportunidade de fazer alguns covers, entre eles, de “Why’d You Only Call Me When You’re High?”, do Arctic Monkeys, cujo resultado foi extremamente satisfatório e surpreendente para muitos que duvidavam de sua versatilidade na música. A partir daí, um movimento se tornou crescente nas redes sociais: “Por que Miley Cyrus nunca fez um álbum de rock?“
Muitas respostas podem responder o porquê Miley Cyrus nunca se arriscou em um álbum de rock antes, e nenhuma dessas respostas está ligada ao seu talento, capacidade e versatilidade artística. Talvez a melhor resposta para esta pergunta seja o fato de que o rock já não é mais tão popular ou comercial quanto foi um dia, e isso é um fato. Por que se arriscar em um gênero que não vende tanto quanto a música pop mainstrem? Ainda sim, Miley foi lá e fez. Assumindo uma persona artistica e visual que parecia ter vindo diretamente do auge do glam rock dos anos 80, “Plastic Hearts” chegou às plataformas de streaming em outubro de 2020, com colaborações de peso como Dua Lipa, Billy Idol, Joan Jett e Stevie Nicks. Os artistas envolvidos na produção já deixavam claro que Miley não estava para brincadeira, muito menos brincando de ser rockstar.
Sua nova persona rockeira foi muito bem aceita e recebida pela sua base de fãs, assim como o conceito e sonoridade do álbum foi bastante elogiada pela crítica musical especializada. A era estaria dando tão certo que inúmeros sites e jornalistas afirmam que Miley Cyrus está trabalhando em um álbum de covers da banda Metallica, o que indicaria que ela não planeja assumir uma nova personalidade tão cedo.
But who the fuck is Miley Cyrus?
Em entrevista para a revista Rolling Stone, Miley Cyrus afirmou que Hannah Montana, personagem do Disney Chanel que interpretou desde seus 13 anos, nunca foi uma personagem. A fala veio em um momento curioso, uma vez que Miley passou diversos anos tentando se livrar da imagem de pureza, inocência e otimismo da personagem, numa tentativa de se expressar para o mundo através de sua própria voz.
“Quando meus colegas estão tendo essas experiências e se aceitando por causa de algo que demonstrei quando eles eram crianças, é quando eu digo, ‘Sou a porra da Hannah Montana’. Realmente, Hannah Montana não era um personagem. O conceito da série, sou eu. Tive de realmente chegar a um acordo com isso e não ser uma terceira pessoa sobre isso. Definitivamente, gostaria de ressuscitá-la em algum momento. Ela precisa de uma grande reforma porque está meio presa em 2008, então precisamos ir às compras com a Srta. Montana“, declarou Miley.
A personalidade e atitude excêntrica não é novidade na carreira de Miley Cyrus, muito pelo contrário, se levarmos em consideração que o grande sucesso que fez sua carreira artística decolar foi a personagem do Disney Channel que precisava lidar com a vida dupla e a carreira secreta de estrela da música pop. Apesar de ser uma artista fora curva desde muito nova, e se destacar pelo carisma único, a cantora nunca negou que os anos de Disney foram bastante limitadores, e afirmou diversas vezes que teve sua personalidade pessoal e imagem pública moldada conforme os padrões da Disney Channel.
Desta forma, desde que se livrou da imagem de Hannah Montana, Miley Cyrus parece ter a constante necessidade de se reafirmar como livre artisticamente, sem nenhuma empresa limitando como ela deve se portar e agir, caso contrário, marcos em sua carreira como o “Wreacking ball“, twerks e performances polêmicas com nudez em premiações, não teriam sido possíveis. Até então, nenhum problema. Miley Cyrus pode e deve lançar diversas músicas afirmando o quanto é livre, leve, solta, louca, amante de festas, que nasceu para correr e não pertence à lugar algum. O fato é que já havíamos entendido tudo isso quando ela disse pela primeira vez.
Miley está há tanto tempo batendo na tecla de “eu finalmente estou sendo eu mesma”, que nos faz questionar qual exatamente das vezes ela era ela, e quem é (ou seria) Miley em 2021 sem esta constante narrativa de reafirmação de liberdade? Será que ela estava sendo a real Miley Cyrus no rebelde, subversivo e aclamado ‘Bangerz‘, ou no duvidoso e insalubre ‘Miley Cyrus and Her Dead Petz‘? Ou ela estava sendo a verdadeira Miley Cyrus no amigável e esquecível ‘Younger Now‘? A inconstância em suas diversas personas seria sinônimo de uma alta versatilidade artística ou uma enorme necessidade de atenção através das polêmicas em seus trabalhos?
O questionamento sobre suas personas artísticas é bastante recorrente em entrevistas. Em uma delas, Miley afirmou que interpreta personas diferentes em todos os seus trabalhos, e todos eles são expressões diferentes de uma mesma Miley. O discurso remete bastante à reinvenção artística que diversos cantores e artistas aclamados já utilizaram, como David Bowie, que imortalizou-se na arte como um camaleão do rock. A realidade é que Miley pode ser quem ela quiser, e isto é inegável, uma vez que ela demonstra enorme competência em tudo o que se dispõe a fazer. Entretanto, seus posicionamentos nos levam a questionar: para onde está indo uma artista que se reinventa entre tantas personas mas nunca demonstra vulnerabilidade em um trabalho transparente? Quando as luzes se apagam, as cortinas se fecham e as câmeras não estão por perto, quem é Miley Cyrus?
Em sua nova fase, Miley Cyrus saúda e se inspira em grandes mulheres do rock n roll, como Joan Jett e Debbie Harry, tanto em suas canções que trazem referências do pós punk e glam rock, como em seu visual irreverente que encarna a figura de uma rockstar autêntica, rebelde e independente que vive o auge de sua carreira e sua juventude, em meio a festas regadas a libertinagem. A personalidade artística se mostrou evidente na canção “Prisoner“, em colaboração com Dua Lipa. O clipe da canção foi o suficiente para ilustrar visualmente a identidade da nova era – que mais uma vez, deve ser um tanto quanto insalubre. Há quem sugira que a rockstar daquele clipe seja apenas mais uma Hannah Montana, ou quem ela teria se tornado.