Por Isabella Vilchez e Nataly Santos
O ano era 2013. Depois de 23 anos no ar na TV aberta, a MTV Brasil fechava o sinal com uma grande festa no antigo prédio da empresa, localizado na zona oeste de São Paulo. Nas memórias daqueles que assistiam a transmissão ao vivo do último dia do canal, uma se destaca: o último vídeo escolhido para ser transmitido foi o de “Maracatu Atômico”, música de Chico Science & Nação Zumbi presente no disco “Afrociberdelia”, que completa 25 anos neste ano.
Marco da cultura nacional e do movimento manguebeat, “Afrociberdelia” foi lançado em 1996. A obra foi o último álbum gravado pelo Nação Zumbi – na época, formado por Dengue (baixo), Gilmar Bolla 8, Gira, Jorge Du Peixe (alfaia), Lúcio Maia (guitarra), Pupilo (bateria), Toca Ogam (percussão e voz) – com a presença de Chico Science, que viria a falecer tragicamente em um acidente de carro em fevereiro de 1997, menos de um ano depois do lançamento do disco.
A passagem de Science pela música brasileira foi definida corretamente por Cuca Lazarotto, VJ que anunciou o último vídeo da MTV Brasil, como “meteórica”. O cantor, que também completaria 55 anos neste ano, deixou seu legado por meio dos dois lançamentos com o Nação Zumbi e é apontado até hoje como um dos artistas brasileiros mais influentes para a música mundial.
Em “Afrociberdelia”, Science e o grupo apresentam uma versão mais eclética e diversificada, explorando mais os instrumentos já presentes no primeiro disco, “Da Lama Ao Caos”. A mistura de sonoridades no álbum – que funde as bases do maracatu a elementos do afrobeat, do rock, da psicodelia e do hip hop – expandiu ainda mais o movimento manguebeat e apresentou novas possibilidades de junção de texturas sonoras para a música brasileira.
A “AFROCIBERDELIA” E O MANGUEBEAT
No manifesto “Caranguejos com Cérebro”, escrito por Fred Zero Quatro (vocalista do grupo Mundo Livre S/A) em 1992, a efervescência da cena Manguebeat é conceituada e um holofote é posicionado sobre a história de Recife. No texto, Zero Quatro faz um chamado:
No ano de 1994, a energia e fertilidade do Mangue — que já se alastravam pelas veias de Recife desde o ano em que o manifesto foi criado — se fundiram a novas referências e vieram à vida em forma de disco: “Da Lama Ao Caos”, primeiro álbum de Chico Science & Nação Zumbi, que abriria as portas para o manguebeat como estilo musical.
Se o antecessor “Da Lama Ao Caos” (1994) trabalhou pela consolidação do imaginário e dos conceitos do manguebeat, “Afrociberdelia” aproveitou o caminho mais consistente para apresentar fusões ainda mais ousadas e atravessar os limites de Pernambuco com facilidade, cimentando para sempre o impacto do movimento na história da música brasileira.
O conceito de “Afrociberdelia” foi apresentado pelo grupo ainda no primeiro disco. A canção “Coco Dub (Afrociberdelia)”, que figurou como faixa bônus na versão original de “Da Lama Ao Caos”, apresenta uma definição breve no trecho “Imprevisibilidade de comportamento / O leito não-linear segue para dentro do universo / Música quântica”. Apesar da introdução do termo no álbum de estreia, a conceituação definitiva veio pelas palavras do escritor Bráulio Tavares no encarte do segundo disco:
A experimentação e a psicodelia se fizeram ainda mais presentes e, combinadas aos novos recursos da produção musical, permitiram que a genialidade de Chico Science fundisse as características do manguebeat a gêneros e possibilidades técnicas diferentes. A “mistura criativa de elementos tribais e high-tech” definida por Tavares no encarte do disco ganhou vida por meio das texturas presentes nas canções de “Afrociberdelia”.
Reforçando a ideia do mangue e de uma cidade que se criava e desmontava ao redor dele, passando por questões sociais e étnicas, “Afrociberdelia” é capaz de representar de forma sonora a imagem símbolo do movimento manguebeat: a antena parabólica enfiada na lama, conexão entre o que era criado dentro do mangue e o resto do mundo.
A “AFROCIBERDELIA” COMO DISCO
O primeiro marco do segundo lançamento de Chico Science & Nação Zumbi aconteceu ainda durante o processo de gravação: com a orientação do produtor de primeira viagem Eduardo BiD, o grupo pôde explorar a produção musical e alternativas técnicas com mais eficiência, aproximando os instrumentos da sonoridade concebida nos shows — o que não foi possível no resultado do disco anterior.
A expansão das referências criativas do grupo combinadas ao novo contexto de gravação permitiu que o disco se destacasse pela diversidade de escolhas sonoras. Apesar disso, os temas das faixas seguiram alinhados às propostas do movimento manguebeat: a propagação da criatividade pernambucana, provocação e crítica aos modelos sociais vigentes na época e incentivo à transgressão cultural e artística.
O álbum começa com uma provocação. Em “Mateus Enter”, faixa que abre o disco, Science introduz a atmosfera presente no disco declarando: “Quero ver a poeira subir /E muita fumaça no ar / Cheguei com meu universo/ E aterrizo no seu pensamento”. Esse é o viés que guia as composições presentes em “Afrociberdelia”: dinamismo, rebeldia e amplificação da consciência social.
A apropriação de elementos sonoros presentes no trabalho de outros artistas por meio dos samples é utilizada em “O Cidadão do Mundo”, segunda faixa do disco. Há um uso quase antropofágico dos trechos de músicas de Jorge Ben, Os Mutantes e Gilberto Gil para formar a textura energética da canção, que atesta que “só tem caranguejo esperto saindo desse manguezal”.
Gilberto Gil ainda aparece como participação especial ao lado de Marcelo D2 na música “Macô”, que também conta com samples de “A Minha Menina”, dos Mutantes, e de “Take Five”, de Paul Desmond. Essas não foram as únicas colaborações de outros artistas no disco, que ainda conta com a presença de Fred Zero Quatro, o mesmo do manifesto “Caranguejos com Cérebro”, na música “Samba do Lado”.
Em entrevista para a Rádio Cultura, Chico Science contou que a letra de “Um Passeio no Mundo Livre”, canção conhecida pelo seu ode à busca pela liberdade, surgiu após os percussionistas Gilmar e Gira, ambos negros, sofrerem uma abordagem policial enquanto voltavam do estúdio. A faixa pode ser considerada uma reafironmação do compromisso sociopolítico do manguebeat em questionar problemas sociais que corrompem as cidades.
Sem dúvidas, a canção mais conhecida do disco – e talvez de toda a história do Nação Zumbi – é “Maracatu Atômico”. A música foi escrita por Jorge Mautner e Nelson Jacobina em 1974 e regravada por Gilberto Gil no mesmo ano. A interpretação de Chico Science (que combinou as versões anteriores a um fazer, de acordo com as suas próprias palavras, “sônico”) foi responsável por colocar o grupo em um circuito mais comercial, chegando a ser tocada em novelas e receber releituras internacionais, além de ser homenageada como no último dia da MTV Brasil.
Outra faixa lançada pela banda como single foi “Manguetown”. Com um dos termos definidos no manifesto do manguebeat como título, a música retoma a ideia inicial do movimento de chamar a atenção para o dito “progresso” que levou Recife ao posto de “metrópole do Nordeste”, destruindo parte dos mangues e dando início ao processo de gentrificação da capital pernambucana. Na canção, Science reforça a situação precária de grande parte da população recifense no trecho “Andando por entre os becos/Andando em coletivos/Ninguém foge à vida suja/Da lama da Manguetown”.
Apesar de ter realizado alguns shows para a divulgação de “Afrociberdelia” antes de morrer, Chico Science não chegou a interpretar as músicas “O Encontro de Isaac Asimov Com Santos Dumont” e “Baião Ambiental” ao vivo. As músicas foram tocadas ao vivo pela primeira vez pelo Nação Zumbi na turnê de aniversário de 20 anos do disco, realizada em 2016.
“Afrociberdelia” se posiciona na história da música brasileira como um disco que exteriorizou ainda mais a potência criativa do Nordeste e deu continuidade à consolidação do legado transgressor e autêntico de Chico Science & Nação Zumbi e do movimento manguebeat. Hoje, 25 anos depois de seu lançamento, o álbum segue sendo um convite à reflexão acerca do pensamento coletivo sociocultural e uma força que ainda pulsa a energia da revolução. Que a vivacidade do maracatu, a originalidade dos mangues e a memória da consciência sônica de Science sigam influenciando o alicerce cultural do Brasil.
Ouça:
25 Anos “Afrociberdelia” 25 Anos “Afrociberdelia” 25 Anos “Afrociberdelia” 25 Anos “Afrociberdelia” 25 Anos “Afrociberdelia” 25 Anos “Afrociberdelia”