Enquanto o original marcou o término da banda de forma amarga em 1970, Peter Jackson parece buscar uma memória mais alegre com reedição de 2021
Um Paul barbudo todo vestido de preto, John no centro com o que parece ser um casaco de pele, George à esquerda de ambos com um casaco preto felpudo e calças verdes, Ringo ao fundo comandando a bateria com um sobretudo em vermelho vivo, todos com os longos cabelos ao vento tentando ignorar o frio londrino enquanto se apresentam no telhado de um edifício: a imagem da última performance ao vivo dos Beatles é uma das mais famosas e familiares não apenas a fãs do grupo. Ao mesmo tempo, ela compõe uma das produções mais “escondidas” da banda – o documentário Let It Be, dirigido por Michael Lindsay-Hogg e lançado no dia 13 de maio de 1970.
Além da icônica apresentação no terraço da Apple Corps, o filme retrata sessões de ensaio e gravações dos Beatles em janeiro de 1969 para o que se tornaria o álbum Let It Be. Tanto o documentário quanto o disco foram lançados depois da dissolução da banda em 1970 e acabaram se tornando símbolos da derrocada final do grupo (que chegou a gravar e lançar o mais carinhosamente lembrado Abbey Road no meio tempo).
A ideia inicial era gravar um especial curto que seria exibido junto de uma apresentação ao vivo dos Beatles para a televisão. Lindsay-Hogg usou a técnica de fly-on-the-wall para compor seu trabalho, ou seja, um tom de mais observação e menos interferência, com câmeras por muitas vezes posicionadas a uma certa distância do grupo. O resultado foi pelo menos 56 horas de imagens (segundo um artigo da Rolling Stone de 1970, a filmagem completa poderia chegar a 800 horas), condensadas em um documentário de 80 minutos dividido em três seções que mais parecem uma colagem de cenas musicais do que realmente um mergulho detalhado no processo ou sentimentos da banda naquele trabalho. Ainda assim, a tensão é perceptível.
Em uma das poucas cenas com falas de Let It Be, que acabou se tornando também uma das mais famosas do filme, Paul McCartney e George Harrison se desentendem por um riff de guitarra. “Eu vou tocar o que você quiser que eu toque ou não vou tocar se você não quiser que eu toque”, Harrison diz ao colega. “O que quer que te agrade, eu vou fazer.” Na mesma época, Harrison decidiu sair do grupo (e foi convencido a retornar depois de alguns dias) – mas o documentário não faz nenhuma menção ao ocorrido.
Durante a maior parte de Let It Be, os Beatles parecem distantes um do outro. Mesmo quando tocam lado a lado – logo no início, John Lennon e McCartney dividem o microfone para cantar uma versão de “Two Of Us” – a sensação é a mesma de observar irmãos que acabaram de brigar sendo forçados pelos pais a se abraçarem. Yoko Ono, por muito tempo tida como pivô da separação do grupo, aparece como uma presença muda e apática em vários momentos, enquanto as parceiras dos outros membros ganham rápidos flashes.
Apesar do tom melancólico, o documentário tem também seus momentos mais alegres e meigos, como quando Lennon e Ono dançam ao som de “I Me Mine”, quando Ringo Starr apresenta “Octopus’s Garden” aos amigos, ou quando a pequena Heather, filha de um casamento anterior de Linda McCartney, faz uma visita divertida ao estúdio em um dos trechos mais animados do filme.
Os 20 minutos finais de Let It Be são dedicados ao show no terraço, incluindo as faixas “Get Back”, “Don’t Let Me Down” e “I’ve Got A Feeling”. O documentário mostra uma multidão de curiosos que começa a se aglomerar ao redor do prédio com reações e entrevistas sobre a apresentação de meio-dia de 30 de janeiro de 1969 – a primeira performance ao vivo dos Beatles em mais de dois anos e também a última do grupo. O show é, finalmente, interrompido por policiais e Lennon finaliza com a famosa frase, “Espero que tenhamos passado na audição”.
Ironicamente, um dos períodos mais amplamente registrados em filme da história da banda é também um dos menos acessíveis aos fãs. Além da estreia nos cinemas em 1970 (que rendeu à banda o Oscar de melhor trilha sonora original), Let It Be só foi lançado em VHS e laserdisc nos anos 1980 e nunca mais, nem em DVD ou BluRay (apesar de versões não-oficiais serem facilmente encontradas online). Horas e horas de gravações permaneceram escondidas do público por praticamente 50 anos – isto é, até Peter Jackson ser chamado para trabalhar com elas.
O que esperar de Get Back?
Jackson, diretor da adaptação de Senhor dos Anéis e do documentário sobre a Primeira Guerra Mundial Eles não envelhecerão, foi anunciado em 2019 como diretor de Get Back, um novo documentário feito a partir das filmagens originais de Let It Be produzido pela Disney e Apple Corps e aprovado por McCartney, Starr, Ono, e Olivia Harrison, viúva de George. O filme seria originalmente lançado em 2020, mas foi adiado por causa da pandemia de covid-19 e atualmente tem estreia marcada para 27 de agosto de 2021.
O próprio diretor, fã assumido dos Beatles, contou para a Rolling Stone em 2020 que tinha a impressão de que Let It Be era sobre o término da banda, mas que mudou completamente sua visão quando teve acesso ao arquivo de horas de filmagem. “Você tem a impressão de que eles não queriam realmente se separar. Essa é a principal impressão que eu tenho”, disse. “Eles são uma banda que se move para frente, mas não têm mais para onde ir”.
Em dezembro, o Disney+ disponibilizou uma prévia de cinco minutos de Get Back, em que Jackson diz que a ideia é passar um pouco da energia que o corte final do documentário deve ter. A diferença é visível: no clipe, os Beatles interagem mais diretamente com a câmera, brincam mais, riem mais. Os ângulos são mais fechados em cada um, vários momentos de interrupções ou “imperfeições” são incluídos, além de mais interações entre si – até mesmo uma conversa entre Yoko e Linda. Além, é claro, de imagens mais nítidas graças à restauração do material.
“Eu não senti nenhuma alegria no documentário original, ele estava todo focado em um momento que aconteceu entre dois dos caras [McCartney e Harrison]”, Starr contou em uma sessão de perguntas e respostas via Zoom para divulgar seu EP Zoom In em março de 2021. “O show no terraço também durou só uns sete ou oito minutos. Com o [documentário do] Peter, ele tem 43 minutos. É sobre a música e bastante alegria”.
Enquanto Let It Be registra um período conturbado dos Beatles e, ao ser lançado, acabou refletindo a tristeza do então bastante recente término da banda mais famosa do mundo, Get Back parece buscar uma celebração nostálgica da alegria que era fazer parte daquilo – e mais de cinco décadas depois, parece ser a decisão mais lucrativa mesmo.
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