Novo filme musical da artista é mais que um álbum-visual de uma diva pop; neste trabalho, Beyoncé convida os filhos e filhas da África para escrever uma nova história e prova que é uma das maiores artistas contemporâneas de forma robusta e muito sólida
Texto por Arthur Souza
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Sempre perguntam para as crianças o que elas querem ser quando crescer. Você vai ouvir algumas dizendo que serão médicas, jogadoras de futebol, ou astronautas, entre outras profissões variadas. Embora o futuro seja indefinido, incerto e carregado de ansiedade, nos preocupamos mais com o que está por vir do que com os questionamentos a respeito do nosso passado, daqueles que vieram antes de nós. Beyoncé Giselle Knowles-Carter entrega alguma dessas respostas no filme musical e álbum visual “Black is King” lançado na plataforma de streaming Disney+ no dia 31 de julho deste ano.
A dádiva
Em 2019, o clássico “Rei Leão” voltava às telas de cinema dirigido por John Favreau, em uma versão live-action carregada de nostalgia para os jovens que cresceram vendo a história de Simba em 2D. O filme foi um sucesso de bilheteria, ultrapassando a marca um bilhão de dólares/ U$ 1 bilhão, apesar da discussão se o filme se tratava de um live action ou não. Junto dele, Beyoncé, que interpretou a versão adulta da personagem Nala na produção, lançou o álbum “Lion King: The Gift”, como uma história alternativa daquela contada em “Rei Leão”. O álbum trazia 14 faixas, sem contar as transições e “BLACK PARADE”, adicionada na versão do filme. As músicas, que compõem a trilha e narram “Black is King” , foram o início do que seria uma das mais bonitas homenagens à cultura africana e seus filhos espalhados pelo mundo.
“Fique e firme e mantenha-se excepcional como Ogum”
Assim como o álbum, o filme foi gravado majoritariamente em território africano, em países como a Nigéria, Gana, Egito, e África do Sul. Além de buscar referências no continente berço da humanidade e civilização, Beyoncé convidou artistas que pudessem mostrar ao público a potência da cultura africana contemporânea na produção, a partir de uma releitura da jornada de Simba. A canção “JA ARA E”, do músico nigeriano Burna Boy, vencedor do prêmio de melhor ator internacional da Black Entertainment Television de 2020, faz menção à conversa de Mufasa com Simba sobre a responsabilidade de cuidar das Terras do Reino. Mufasa é o guia espiritual na jornada do filho, assim como o deus da mitologia judaico-cristã é para seu filho, Jesus Cristo. Ambos aconselham cautela ao longo da vida, além de influenciar seu filho à percorrê-la com sabedoria e confiar nos guias, os ancestrais . Não por acaso, o título da música, traduzido do iorubá, quer dizer “seja sábio”.
A música é conduzida por tambores, chocalhos e expressões em iorubá que lembram um pouco de reggae, justamente para trazer um momento de paz e auto-reflexão. O trecho “Ninguém vai te ensinar/ Você vai aprender sua própria lição / Se você não conhecer a si mesmo, se perderá”, faz menção à cena onde Simba está sem amparo porque perdeu a conexão com seu passado, com seu pai e sua terra natal. Ampliando a interpretação, é um recado aos filhos da África para buscar em sua própria história orientação e força para se manter firme perante os desafios.
“Tenho o Nilo correndo pelo meu corpo”
As músicas e toda a construção visual do filme remontam aspectos da cultura e mitologia africana que está dissolvida nas comunidades negras e, por conta da escravidão, colonização, massacre das tribos nativas, fragmentou-se ao longo dos anos, mas resiste e vive nos povos negros. Além da base ancestral, Beyoncé traz para a cultura pop o conceito do afrofuturismo, movimento estético, musical, artístico que busca no passado africano referências para pensar e construir uma realidade próspera e célebre protagonizada por pessoas negras.
Antes da expressão “afrofuturo” ser cunhada pelo escritor de ficção científica branco Mark Dery, em 1994, no ensaio “Black To The Future: ficção científica e cybercultura do século XX a serviço de uma apropriação imaginária da experiência e da identidade negra”, o artista Herman Poole Blunt, conhecido pelo nome “Sun Ra” (deus do Sol na mitologia egípcia) já era um dos precursores do movimento na década de 60, que cria um ambiente sideral a partir de batidas do jazz e de instrumentos presentes na música africana, conduzindo o ouvinte a uma viagem ao espaço.
Em “Black is King”, a música “NILE” composta por Beyoncé com a participação de Kendrick Lamar, responsável pelo “Black Panther: The Album – The Music From and Inspired By”, que também possui elementos afrofuturistas, traz algo semelhante às músicas de Sun Ra: uma atmosfera etérea, quase como uma prece. Beyoncé canta “Quanto mais escura a baga, mais doce a fruta / Quanto mais profundas as feridas, mais profundas as raízes”. O rio Nilo é o berço do império egípcio e de outros povos responsáveis pela revolução agrícola, desenvolvimento de formas de escrita em hieróglifos, sistemas matemáticos, já avançados para a época.
“A mão que balança o berço governa a nação e o destino”
Por causa da prosperidade do continente na antiguidade, o panteão de deuses africanos relacionados à fertilidade é bem diverso e pode ser associado tanto à deusa Ísis, quanto à deusa HetHeru, a quem Beyoncé faz referência em um dos figurinos.
“Het”, quer dizer “casa” e “Heru”, “luz”, porque segundo a mitologia a deusa teria capturado a luz do Sol para iluminar os céus noturnos do mundo dos humanos. Ela tem a aparência de mulher, com chifres de vaca e um disco solar na cabeça, símbolo do período fértil feminino (através da fases da lua, nova e crescente, os povos antigos conseguiam determinar o ciclo de menstrual). Outra entidade feminina da cultura africana citada é Oxum, deusa do amor e orixá responsável pelo equilíbrio das relações dos seres humanos, a quem Beyoncé chama de irmã na faixa “MOOD 4 EVA”.
O protagonismo feminino africano é representado além das figuras míticas. As mulheres africanas eram chefes de estado, assim como os homens, e tinham papel de igual ou maior relevância em sociedade. Histórias como as da rainha Nzinga, que defendeu o reino de Ndongo e Matamba, onde hoje seria o território da Angola, contra os colonizadores portugueses, podem ser assemelhadas com a música “MY POWER”, fazendo referência ao momento do filme em que as leoas se unem para derrotar Scar. Junto de Beyoncé, as musicistas Nija, Busiswa, Yemi Alade, Moonchild Sanelly, Tierra Whack compõe um grito de guerra para as mulheres africanas e das suas descendentes em outros continentes, fazendo o sangue ferver de empolgação e de respeito por aquelas que defendem e preservam o povo e a cultura.
“Ele vive em você”
Muito mais que qualquer fonte de referência cultural, “Black is King” é um refúgio. Em um ano conturbado pela pandemia, protestos contra o racismo e o extermínio da população negra nos Estados Unidos e principalmente no Brasil, o filme traz paz e felicidade. Beyoncé, que dirigiu, produziu, roteirizou a obra toda fez um trabalho respeitoso e admirável ao continente africano e toda sua história. Não é um trabalho perfeito, mas dá outra dimensão para o conto de Simba para o povo negro, e até Scar ganha mais profundidade nas músicas. Homenagens à antepassados que vão desde os mais antigos, até os mais contemporâneos, incluindo aqueles que estão por vir, como faz na belíssima “BROWN SKIN GIRL”, uma carta de amor sobre aceitação da beleza de mulheres negras, com a participação da voz doce da Blue Ivy Carter, sua filha. É um legado que se estende por gerações e até pode ter sido esquecido por causa de anos de escravidão e massacre, mas essa não é uma história escrita por nós, povo preto.
Não é só de luta que se sobrevive, celebrar e festejar o que há de melhor em nós também é resistir. É reconhecer e assumir as nossas majestades interiores, que há tanto tempo vivem adormecidas, seja por falta de exemplos, de perspectivas ou insegurança. É um espírito ancestral que ecoa e que vive dentro de nós por toda a parte, seja hoje, ou no nosso futuro brilhante.